sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Natal

A vida só vale a pena se lhe dermos um significado.


Viseu acordava envolto num manto branco. Tinha nevado durante a noite e estava frio. Joaquim saiu de casa bem cedo, como já era hábito seu. O seu filho, Martim, ficara em casa, como já era hábito seu.
Joaquim vagueava com um passo acelerado como se tivesse um destino, mas sabia que não o havia. Enquanto caminhava, com as mãos nos bolsos, o pescoço aconchegado com um cachecol castanho velho, ia limpando as lágrimas que lhe escorriam e arrefeciam na cara com o ombro. Tinha a barba por fazer.
Martim era pequeno, tinha 6 anos. Os seus cabelos louros condiziam com os seus olhos de um azul claríssimo. A sua avó, que também vivia na casa, dizia que ele era parecido com a mãe. Ele não sabia, porque nunca a conhecera.
"O pai?"
A avó assustou-se com a pergunta do neto. Não estava à espera de o ouvir tão cedo.
"Então, já estás de pé?"
"Sim. Estava frio, já não tenho sono."
"Oh, pequenino... Anda cá que a avó serve-te um copinho de leite quente."
A casa era velha. A cozinha era mais fria que qualquer outro compartimento, mas o pequeno Martim levava uma manta atrás e embrulhava-se em cima do banco.
"O pai?"
"O pai? Ele foi à rua..."
A avó falava-lhe enquanto segurava na chaleira onde aquecera o leite.
"À rua?"
"Sim, disse que ia falar com o Pai Natal, já lhe escreveste a carta?"
"Sim."
"E meteste no correio?"
"Não, dei ao senhor carteiro."
"Deste? E o que é que pediste?"
"Ao senhor?"
"Não, ao Pai Natal?"
Começou a servir o neto. O leite tinha natas. Ninguém gosta de natas. A avó tirou-lhas com uma colher, mas não as conseguiu eliminar na totalidade.
Joaquim chegara ao fim do caminho. Estava no meio do Rossio. Olhou para cima. Sentiu as gotas a baterem-lhe na cara suavemente.
"Não pedi nada."
"Nada?"
"Sim. Não pedi prenda nenhuma."
"Mas não pediste mesmo nada?"
"Pedi que me tirasse a doença."
Tinha o cabelo despenteado, e a brisa que se fazia sentir levantava-o na parte da frente. A praça era cruzada por gente, constantemente cruzada por gente alheia a tudo e todos.
"Oh querido.."
A avó abraçou-o.
"E o que é que o pai foi falar com o Pai Natal?"
"Foi ajudá-lo a escolher uma prenda para ti!"
A avó sorriu, mas Martim olhou-a sem expressão.
"O que foi?"
"Porquê uma prenda? Eu não pedi uma prenda."
"Porque..."
Imobilizado no meio da calçada, olhou em volta. E pensou. Não tinha deixado nada na vida. Teve um filho, com uma mulher moribunda, e agora estava também ele e o filho a morrer ao poucos. 
"Achas que o Pai Natal não me tira a doença?"
Tirou as mãos dos bolsos, na direita empunhava um revólver. Encostou-o ao queixo.
A avó soltou um suspiro trémulo.
"Não."
As pombas voaram dos ramos e dos fio eléctricos. A gente alheia, estava agora mais próxima que nunca.






Feliz Natal.
Di-lo a toda a gente alheia.

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