quarta-feira, 20 de julho de 2011

Diálogo 1 - O canto dos pássaros

 (Vou publicar no blogue uma série de diálogos que me ocorram. Sem descrição do local, nem definições das personagens, para que a experiência seja nova e original para cada um dos leitores. Espero que gostem, e que opinem!)


Ei! Estás a ouvir-me?
Sim.
(Com um sorriso) Ouvi um pássaro cantar.
O quê?
(Olham-se, ainda deitados, em silêncio.)
Um pássaro?
Sim.
Agora?
Sim.
Onde?
Lá fora.
Sabes o que é que isso quer dizer?
Sei...
(Ele ri, silenciosamente. O outro também.)
Estamos salvos?
Não. Tens a certeza de que ouviste um pássaro cantar?
Absoluta.
(Silêncio.)
Já nem me lembro como é que eles são.
São bonitos.
Sim, eu sei.
Alguma vez olhaste bem para um pássaro?
Não sei.
Eles têm o Universo nos olhos.
É?
É.
Porquê?
Porque não sabem a nada.
Os olhos?
Sim.
Não sabem a nada?
Não.
Porquê?
Olhas para lá, e não vês nada a não ser o teu reflexo. E isso quer dizer que o que eles sentem é o que tu estás a sentir, porque te vês a ti. E isso não sabe a nada, porque já o sentes. Eles não te trazem nada de novo. Como o Universo. Só nos ensinam o que nós já sabemos, e que nos recusamos a ver. Só nos fazem olhar mais para nós.
Será que eles se vêem nos meus olhos?
(Pausa.)
Não há som mais bonito que o canto dos pássaros.
Estão a falar, lá fora?
(Calam-se.)
Sim.
Consegues perceber o que eles dizem?
(Pausa.)
Parece que já chegámos..
Mas ainda se sente ondulação.
Eles devem-nos querer enviar em grupos. Nos botes. Acorda os outros, chegou o dia.



terça-feira, 19 de julho de 2011

Ontem fui ao Porto. E mesmo no meio de uma viagem traumatizante, vi algo que gostaria de partilhar.
Saí de Viseu bastante cedo, eram sete horas. Sabia que ainda tinha muito tempo até começarem as provas na escola, mas mais vale prevenir que remediar, e os autocarros têm um certo prazer especial em chegar atrasados. Mas cá estamos nós para contrariar a rotina, e o autocarro adiantou! Cheguei ao Porto às oito e meia, pouco mais. A estação da Batalha faz jus ao nome, não? Eu vi-me um bocado perdido na quantidade de manobras feitas pelo motorista do autocarro, e pela excessiva confusão na garagem. Saí da gruta urbana, e pisei o passeio da rua. Cortei à direita. Passei por uma série de cafés cheios e quiosques com as revistas e os jornais a forrarem suportes metálicos com o que de pior se faz neste mundo (porque o bom não precisa de ser noticiado, aparentemente). Cumprimentei o Teatro Nacional, e segui pela Rua da Santa Catarina. Confesso que não sou apaixonado pelo Porto, mas pelas pessoas (algumas, vá) de lá. Nesta rua, às nove menos qualquer coisa da manhã, com as pessoas mais concentradas nos seus pensamentos do que no que as rodeia, num silêncio que consome o barulho dos carros, tornando-os a eles silenciosos também, ouvi batidas no chão, que se repetiam com alguma frequência. Olhei, e vi um homem que apalpava terreno com uma vara comprida, que lhe substituía os olhos. Ao lado dele, um pouco atrás, ia uma senhora, que lhe agarrava ao cotovelo, também ela a ser guiada. Ele era os olhos dela. Achei a imagem bonita, dependiam um do outro. Não sei sequer se se conheciam, mas quero acreditar que se amavam um ao outro, que dependiam um do outro. Torna a coisa mais romântica. Infelizmente, a expressão na cara deles não era diferente da dos outros que os rodeavam.
Há algum mal em sorrir quando andamos sozinhos na rua? É que eu faço isso...

terça-feira, 12 de julho de 2011

PTT



Escrevi isto há uns meses, mesmo antes de passar na televisão, sobre o Portugal tem Talento.

Quando estamos a ir para lá há um certo nervosismo, ansiedade, medo. Quando lá chegamos, não conhecemos ninguém, somos estrangeiros, e eles também. Mas começamos logo a falar com os outros. A pergunta mais frequente é "O que vais fazer?". Mas estamos felizes por estar ali, com aquelas pessoas que não conhecemos, ou preferimos nem conhecer por algum motivo. Ligam-se os holofotes, os homens que carregam uns instrumentos de captação de imagem relativamente grandes começam a aparecer, sempre acompanhados por uma equipa onde as tarefas são muitas. Pessoas que fazem a grande parte do trabalho e que não podem dar a cara, a que chamam produção. A certa altura começamos a gravar cenas na rua, entrevistas, gritos e aplausos. Depois do almoço, as audições começam. Um a um somos chamados por números. Um a um vimos os outros desaparecer. eventual e ocasionalmente ouvimos aplausos, a sala está cheia, ouvimos negas, ouvimos risos e sorrimos. Conhecemos talentos, e ganhamos amigos. O dia é longo e demora a passar. Vimos o dia nascer e, de certa maneira, morrer. Sofremos de uma apatia provocada por um dia expectante mas calmo, muito calmo... E ao fim de cerca de 14 horas de espera o nosso número é finalmente chamado. O nervoso desvaneceu, e transformou-se em cansaço. Descemos para uma sala de preparação, onde nos sentamos e esperamos para entrar no palco. A sala é pequena, com umas cadeiras pretas e uma luz muito branca. Há uma câmara que nos filma, e a conversa serve para descontrair. O rapaz que vai à nossa frente foi a primeira pessoa com quem falámos quando chegámos, e quando a senhora da produção o chama, ele levanta-se e é engolido por um grupo de 3 ou 4 pessoas vestidas de preto, que o levam para o palco. "Boa sorte!" é a última coisa que lhe dizemos. E eventualmente chega a nossa vez. Somos também nós engolidos pelos de negro, que nos levam para o palco. Aqui o ritmo acelera. Passam-nos de mãos em mãos até chegarmos às do director artístico do programa que nos fala um pouco, não me lembro o quê, mas algo para nos encorajar. Depois os técnicos de som que nos perguntam que microfone vamos usar. Do nada uma senhora passa-nos uma espécie de vassoura muito macia e aberta na cara, larga um pó. Ao mesmo tempo, e sem nos mexermos, os técnicos de som instalam o microfone. Conseguimos ouvir a apresentação do participante a decorrer do outro lado das cortinas opacas pintadas de preto. Num instante estamos prontos para entrar em cena, mas temos de esperar. Há um momento de calma, e ouvimos as negas do júri. O directos do programa fala mais um pouco connosco, nada de especial, só para aumentar a moral. Não podemos ver o outro concorrente mas sofremos com ele. E do nada ouvimos uma voz lá no fundo que diz "3,2,1", agarram-nos no braço e dizem muito rápido e baixinho "Vai ter com a Bárbara!", começamos a caminhar e vimos uma objectiva virada para nós, sobre ela uma luzinha vermelha. Falamos um pouco, declamamos um excerto de Florbela Espanca, e somos empurrados para o palco. Falamos com o júri, falamos bastante, apresentamos o nosso número, ouvimos o júri, passamos. Voltamos a ter com a Bárbara, e pronto. Valeu!

sexta-feira, 8 de julho de 2011


Monólogo do autocarro

Isto passa-se numa espécie de hospital, num tempo incerto. O texto é dito com vários ritmos diferentes, e com muitas pausas e apartes. Baseado na obra "O Encarregado", de Harold Pinter. Escrito no início da viagem de autocarro que me trazia de Lisboa para Viseu, com paragem em Coimbra.

Miguel (visivelmente perturbado) Conheci um rapaz, uma vez, que era manco. Tinham-lhe feito uma operação mal acabada, e ele acabou por ficar assim. Diziam que ele não tinha remédio. Pois, ele não, mas a perna tinha, foi o que eu disse. A perna vai para o lixo, disse eu. E ouvi alguém chamar-me louco, ou doido, ou qualquer coisa parecida. Mas sabem que temos de ter ouvidos selectivos. Ele chamou-me doido, mas mal sabia que mais tarde se ia fazer isso. Porque se fez. Eles vieram buscá-lo numa maca, quer dizer, (pausa) ele já estava numa maca, e eles vieram buscá-la. Ou tiveram de o tirar? Pronto, eles vieram, assim brancos. Como a neve na torre da Serra da Estrela. Quer dizer, grande parte brancos, porque depois tinham outras cores, quer dizer, não é como se fossem bonecos de neve! E eles vieram, e apanharam-no a dormir. Eu sei, porque estava lá ao lado, na outra cama. Eles falavam baixinho, para não o acordar. Eu não achei bem, quer dizer, tirarem o homem dali sem o avisar. E gritei. Gritei assim, Ei! O que é que estão a fazer, hã?, e eles disseram-me para me calar, mas eu não me calei, e eles vinham para mim, e o homem não acordou, o que eu achei estranho, porque até veio uma enfermeira à porta, por isso o meu berro deve ter sido alto, quer dizer, eu sei que foi alto, porque tenho a noção das minhas capacidades. Mas eles vinham na minha direcção e eu ainda os tentei afastar com os braços, assim. E eles não pararam, agarraram-me dois ou três, e prenderam-me à cama, mas como eu não me calava eles deram-me uma injecção qualquer. Adormeci, e quando acordei já tinham deitado o homem na cama dele. Ele ainda estava a dormir, mas a mim pareceu-me mais moreno, se calhar porque não havia muita luz. Eu acho que ele era surfista. Mas eu levantei-me, quer dizer, para ver se ele estava bem, e cheguei-me perto dele, que estava coberto com uns lençóis brancos, como neve suja da estrada, e mandei a mão à ponta do lençol e… (pausa) E ele abriu os olhos, e gritou. Gritou muito, assim, AHH!! E eu assustei-me. E chegou uma enfermeira a correr pela porta a dentro, e eu olhei para ela, e ele perguntou o que é que eu estava a fazer, mas nem me deu tempo para responder, agarrou-me o braço, mas eu sou mais forte e consegui que ela não me tirasse do sítio, dei-lhe um empurrão, e ela foi a cair sem equilíbrio até à parede, bateu com a cabeça e desmaiou. E o homem continuava a gritar, e eu agarrei no lençol e baixei até aos pés… Quer dizer… Ao pé. (pausa) Tinham-lhe cortado a perna, assim, aqui nesta zona mesmo acima do joelho. Ou mesmo no joelho, não sei, nunca soube muito de anatomia, e agora nem me lembro muito bem, porque estava escuro e sujo. Mas o corte estava mal feito, o instrumento que usaram não estava bem afiado. E a perna estava meia desfeita na zona do corte. E ainda não tinha cicatrizado, porque a ligadura do homem estava ensopada em sangue. Eu sei porque também tinha passado sangue para o colchão. Mas não estive muito tempo a olhar para ele porque chegaram muitos homens com seringas e coisas, e batas e tudo, e levaram-me para um sítio qualquer, e deram-me qualquer coisa, ou fizeram, não me lembro bem. Sei que já não me lembrava muito bem das coisas, nem de mim, nem sabia onde estava quando acordei. Ainda nem sei onde estou, mas prenderam-me aqui. Depois ouvi uma conversa de uns tipos. (pausa) Bem, eu só espero que quando me cortarem a cabeça usem uma faca bem afiada.