sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Voa

Pisou a tábua velha e podre. Fitou o comboio enquanto ele se aproximava.

António conhecia o Silva. O Silva não o conhecia a ele.
A corrida começava à hora marcada, como era hábito do estabelecimento. "Pontualidade, Segurança e Felicidade", estava escrito numa placa de plástico que se encontrava pendurada a um palmo da porta, na parede, de um branco por vezes escuro, e muitas vezes brilhante.
Os cães começam a correr assim que o tiro é disparado, as portas dos compartimentos claustrofóbicos em área, mas estranhamente arejados, abrem-se, e uma espécie de lebre robótica é projectada do lado esquerdo da pista a uma velocidade aparentemente excessiva.
O espectáculo atrai algumas dezenas de pessoas, apostadores. Longe vão os tempos em que o negócio rendia centenas de espectadores, milhares de dólares por ano.
"São Galgos!"
"Perdão?"
"Os cães. São Galgos."
António sorria, enquanto contava a curiosidade em inglês.
"Ah..."
"Ingleses. Galgos ingleses."
"Pois."
Durante uns momentos permaneceram calados, a ouvir o som ambiente. Era desagradável.
"Isto é uma tradição inglesa, sabe?"
"Pois."
"Surgiu quando..."
"Olhe, amigo, eu tenho de ir andando. Com licença."
"Sim, claro."
A corrida acaba cedo para quem não sabe correr.
António voltava todos os dias cabisbaixo para casa. Conhecia o caminho de cor.
Quando chegava ao pequeno apartamento que tinha nos arredores da cidade americana que o acolhera quando abandonou a família, o país, e a nacionalidade, a primeira coisa que fazia era tomar um duche, vestir a roupa de Domingo, e ligar o computador. Tinha de falar com a família.
"Olá querido!"
Ah, sabe bem ouvir falar a nossa língua.
"Olá, as crianças?"
"Não estão. Foram para casa do Francisco, vão lá passar o dia. Mandam muito beijinhos!"
"Ah... Eles são os maiores. Manda um grande abraço para eles."
"Então e o trabalho? Como tem corrido?"
"Bem. Cheguei agora. Sabes como é, reunião atrás de reunião. Enfim, consegue ser cansativo."
"Sim, mas já está a acabar, não? Era temporário, não era?"
"E é, e é. Mas vou ter de ficar mais uns tempos. Eles precisam de mim mais uns tempos."
Olham-se a partir do ecrã do computador, e uma webcam barata. Durante uns instantes ficam calados. Ouve-se uma ambulância passar na rua.
"Têm recebido o dinheiro que vos mando?"
"Sim, temos. Obrigado, querido."
"Tem chegado?"
"Sim, ainda é bastante."
Calam-se durante um bocado.
"Gosto muito te ti."
"Eu também."
"Tenho saudades tuas."
"Também eu."
Três anos passam num instante.
"Adeus."
"Adeus."
 Adeus. (Aqui podem meter esta música a tocar: Escolham a opção de abrir numa outra página ou separador.)
Fechou o portátil. Levantou-se e despiu a roupa, arrumou tudo.
Estava sozinho.
Chorou. Mais uma vez.
Escreveu de novo a última carta da sua vida. Deixou-a na mesa de cabeceira.
Deitou-se de boxers, com a persiana meia corrida, permitindo que o quarto se enchesse de estrelas formadas pela luz que vinha da rua, e apenas penetrava na casa a partir das pequenas aberturas da estrutura de plástico branco mal fechada.
Respirou fundo. Adormeceu.
  .

O despertador tocou. Eram cinco e trinta da manhã.
António levantou-se, preguiçoso, e bufando algumas vezes. Foi à casa de banho, lavou a cara. Abriu a janela do quarto. O sol estava a nascer. Arrumou os lençóis da cama. Foi à cozinha. Abriu a porta do frigorífico velho. Tirou a garrafa do leite, serviu um copo. Bebeu o leite, em goles lentos, pausados, como se estivesse a comer um banquete líquido. Baixou o copo deixando que a base assentasse na madeira da mesa. Fitou o copo vazio, avaliando o movimento do leite residual que insistiu em ficar agarrado à parede do copo. Arrumou tudo. Voltou ao quarto, vestiu umas calças que pareciam demasiado gastas, e uma camisola de mangas cavadas branca, com manchas de suor. Ao sair de casa agarrou no casaco. Vestiu-o.
O carro estava longe. E, ao início do dia, a temperatura ainda é de noite.
Ligou o carro e avançou.
Quando chegou à obra já haviam chegado os seus colegas todos. Cada um levantando na mão esquerda o capacete branco, pintado de vermelho com spray. Saiu do carro, com o capacete numa mão, e na outra uma caixa metálica, onde tinha o almoço, que era uma sanduíche de queijo.Olhou os colegas. Eles faziam cânticos com um ritmo batido de protesto. Aproximou-se, com receio e estranheza, e num instante viu tudo o que construiu cair, como um castelo de cartas quando alguém sopra. Tentou fugir das câmaras de televisão que ali estavam a cobrir o momento. Agarrou um colega pelo braço, puxou-o.
"O que é que se passa?"
"Estamos a lutar pelos nossos direitos, Anthony!"
"Que direitos?"
"Anthony, somos pessoas. Temos direitos!"
António olhou-o nos olhos, como se aquele que o fita lhe afundasse uma faca na barriga. Olhou depois para o céu. Estava prestes a começar de chover.
Alguém lhe pinta o capacete de vermelho, sem ele querer, pintando também um pouco a mão e estragando a roupa com tinta de spray. António reage com um movimento repentino, agarrando esse alguém pelo pescoço. Atira-o para o chão num movimento carregado de fúria.
"Anthony, estás bem?"
"Parem com isto!"
"Anthony, calma!"
Neste momento, há uma explosão na obra, seguida de uma derrocada.
"Nós vamos parar à cadeia!"
"Cala-te!"
António corre para o carro. Liga-o. Vai para casa.
Em casa, apanha apenas a carta. O resto que fique com quem o trouxe.
Começou por fugir do país, agora fugia de si mesmo.
Foi para um novo começo. E acabou onde havia começado, em casa. Portugal.
Fez questão de visitar a família, para ver quem lá estava.
 Tocou. Será que eles o iam reconhecer? Tinha mudado desde a última vez que o tinham visto.
A porta abriu-se. Era um homem.
"Boa tarde, posso ajudar?"
António Silva. Português. Foi para os Estados Unidos, criando a ilusão de um convite promissor, numa firma famosa.
"Posso ajudar?"
Engolia agora em seco. O seu substituto abria-lhe a porta?
Fez duas tentativas para iniciar o discurso mas as palavras não lhe saiam da boca.
"Sim." Estava rouco.
"Então?"
Abriu a mochila. Tirou de lá o envelope, com a sua última última carta.
"Procuro pela Ana Simões."
"Sim, é aqui."
"Ela está?"
"Sim. Quer que a chame?"
"Não! Entregue-lhe isto."
"O que é?"
"Diga-lhe que é de alguém que lhe quer bem."
"Quem?"
"Alguém que conheci nos Estados Unidos."
Houve uma pausa. Quando a mentira que mantemos ganha corpo, passamos a ser nós a única mentira.
"Senhor António?"
Ele começava agora a lacrimejar.
"Dê-lha, por favor."
"Quem é o senhor?"
António limitou-se a olhar o outro nos olhos, como se lhe pedisse esmola.
Virou costas. Respirou fundo. Saiu.
O homem entrou para dentro de casa.
"Dona Ana!"
"Sim?"
"Esteve aqui um homem, deixou isto para si."
"O que é?"
"Diz que é de alguém que lhe quer bem, nos Estados Unidos."
"Nos Estados Unidos?"
"Sim."
A mulher apressou-se. Abriu a carta, datada de há um ano, rapidamente. Tirou o conteúdo e leu.
Correu para a rua, empurrando o rapaz que lhe tratava do jardim do caminho.
Da porta, procurou, e correu para o passeio.
"António!"

António ouviu o grito da mulher.
Pisou a tábua velha e podre. Fitou o comboio enquanto ele se aproximava.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011



"Olá."
Neste momento, confesso, estou a sentir um vazio imenso. Talvez isso se deva ao facto de estar a ouvir esta música. Estou a ouvi-la porque pensei que talvez me inspirasse para escrever alguma coisa. A verdade é que não inspirou. Em vez disso, fez-me recuar no tempo. Fez-me sentir um vazio. A verdade é que as pessoas fazem falta. Provocam saudade, mesmo quando não existem. E eu vejo-me como uma pessoa muito solitária. Isso não pode ser saudável. O que eu queria mesmo era pegar na mochila e fugir. O que eu queria mesmo era mudar a minha maneira de ser. O que eu queria mesmo era não me apaixonar tão facilmente. É muito fácil apaixonar-me. Apaixono-me muitas vezes. E iludo-me. E acabo por me magoar sem razão. Era escusado.
Considero que o Verão passado foi o Verão mais criativo que já tive, acho que foi o Verão mais inteligente e inspirador de todos os Verões. Dessa altura, e de outras, guardei vários blocos de notas e folhas soltas, ou mesmo pedaço de folhas, que guardo numa caixa. No outro dia abri-a. Entre pensamentos e filosofias, textos dramáticos, contos, poemas, rabiscos, e tudo o que é possível fazer numa folha, encontrei uma frase. "Diz não ao amor". Como disse, foi o Verão mais inteligente, e acrescento, genial que já tive. Não sou pessoa de me arrepender, por isso, só me arrependo de uma coisa. Amar, sem ser amado. Porque eu sei que sou feio, chato e desinteressante, que o sexo feminino é complicado e difícil de compreender, e que o Homem é simples e estúpido.
Desculpem a divagação. Tudo se resume à minha falta de coragem. Gostava de dizer que te amo, e de te escrever canções de amor, e levar-te a fazer um pique-nique, à beira do rio, mas nunca disse o que devia dizer, e talvez seja tarde agora.