sexta-feira, 27 de abril de 2012

Uma sala escura. Um espelho. Uma caixa de cartão. Uma tela pintada. Um boneco de peluche.

Gaspar (Do interior da caixa) Sabes uma coisa? Não acredito em ti. (ri) O que te dá autorização para não acreditares em mim! Tempo. Mas não acredito em ti no sentido de não acreditar no que estás a dizer. Não acredito que estás aqui.

Pausa.

Estás aqui, não estás?

Pausa.


(Não se ouvindo nada.) Ah! Tempo. Sabes que é perigoso entrar em grutas que não conheces. No bosque há algumas, mas eu estive a sinalizá-las para não caíres lá como os outros.(Sai da caixa de cartão.) Ufa! Estou cheio de teias de aranha, acreditas? (ri às gargalhadas) Isto é giro. Pareço uma aranha. Hã? Ah, sim! Uma teia! Ou um móvel velho! Ou uma biblioteca!

Guilherme (Escondido atrás do espelho) Gaspar, estás a falar comigo?
Gaspar Não.
Guilherme Ah.

Pausa.

Sabes, não acredito em ti.
Gaspar Em mim?
Guilherme Hã?
Gaspar Não acreditas em mim?
Guilherme Em ti acredito.
Gaspar Ah! Estavas a falar com quem?
Guilherme Comigo.

(cont.)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Bicho




"Por favor, entre."
A voz era familiar, mas estava encapuçada, por isso seria muito difícil dar cara ao corpo peludo.
"Obrigado."
O lustre estava alto. Brilhante. Estava imenso calor lá dentro.
"Que bonita está!"
Tiraram-lhe o casaco. Era volumoso e castanho acinzentado. Feito de esponja.
"Esse vestido é lindíssimo, é de quem?"
Vinha de vestido vermelho. Os lábios estavam sobriamente pintados de vermelho, a pele excessivamente branca, os olhos vermelhos, como os dentes.
"Posso tirar uma fotografia?"
"Claro!"
"Permita-me só que acrescente um pormenor."
"Claro!"
Tira um lápis preto do bolso. Desenha-lhe um ponto um pouco acima do lábio, próximo do canto direito da boca. Rapidamente foge aos limites do ponto, e de ponto passa a linha, depois mancha, num instante estaria preta por completo.
"Óptimo!"
"Gosta?"
"Sim, sim. Fique só um instante quieta."
"Claro."
O macaco vestido de pinguim tirou os binóculos por um momento. Os seus olhos eram pequenos. Levou a máquina ao rosto. Desligaram a fonte de chocolate que estava no centro, e começou a tocar uma orquestra de violinos entre o macaco e a recém preta.
"Um momento..."
Toda a gente começou a dançar, e não demoraria muito até que os passos de dança provocassem a queda da parede lateral onde estavam desenhadas cenas de caça.
"Um..."
A fotografia começava a ser um sacrifício para todos. Uma avestruz acabara de ter um ataque cardíaco por falta de comida nas penas. O porco levantou-se com uma perna de presunto na mão e cumprimentou, acenando a cabeça, a vaca que pedia agora um hambúrguer vegetariano.
"Dois..."
Eles pararam de dançar, e a parede voltou a compor-se. O tecto ganhou uma racha entre os bicos, que quase se uniam, de um pato e um cisne. Uma especiaria começou a cantar e, de repente, todos queriam ser amigos dos amigos dela.
"Três!"
E com isto o macaco carrega no botão. Lançam-se confetis e tocam cornetas. A racha no tecto abre em buraco e uma máquina de lavar roupa cai de lá com a porta aberta. As luzes desligam-se e vê-se tudo à luz escura. A máquina, que era branca, caía azul e o sorriso na cara dos presentes era amarelo. Porco rompeu numa gargalhada que ganhou proporções astronómicas! Tanto que Andrómeda teve de vir pedir silêncio sob a ameaça de mostrar o buraco negro.
E a máquina. O movimento de queda da máquina era em câmara lenta, por isso os casais poderiam recomeçar a dançar pois ainda faltava muito para a máquina atingir o chão.
"Quer dançar?"
"Claro" - disse a preta - "Mas tenho de estar aqui antes da meia noite!"
A preta estava no local de embate. A máquina cairia sobre ela e não o poderia evitar, à meia noite tinha de ali estar.
Dançaram uma valsa, enquanto o canguru bebia café.
E a máquina descia.
O Coelho tomou o púlpito e começou a falar.
"Animais" - dizia ele - "Estamos neste jantar por um motivo."
Toda a gente congelou sob a luz negra. Da preta só se viam os dentes roxos e o vestido, da mesma cor, pois congelara de olhos fechados. Apenas Coelho estava iluminado por uma luz que entrava pelo buraco da máquina, que era a única coisa em movimento, lento.
"Por favor, paguem a felicidade antes que alguém se tenha de ir embora. Odeio ter de ser eu a dizer isto, mas a culpa é do Sapo, que entretanto já cá não está. Não foi convidado, a pedido da porta."
O movimento voltou à sala, mas apenas para um grupo de pessoas mais feias que saíam de buracos que faziam no soalho. Houve um que saiu da gaveta onde o suricata tinha os óculos.
Um por um, os sorrisos foram desaparecendo.
A sala estava agora repleta de pirilampos-olhos. Vista de cima parecia um bananal ao longe, para quem é míope.
Entretanto a meia noite chegara, e a preta teve de ir para debaixo da máquina. Olhou para cima e não chegava um palmo para que a máquina engolisse este belo, e único, espécime de ser humano. A porta da máquina estava aberta e voltada para a preta. Os relâmpagos acenderam-se como lâmpadas fluorescentes no céu.
A preta desapareceu. E com ela desaparecera toda uma espécie. Apenas os sapatos ficaram, e mesmo esses eram feios e cheiravam mal, por isso foram para o lixo.
Houve um momento de silêncio.

Os confetis saíam dos cantos da sala e uma corrente de felicidade unia os presentes. Coelho devolveu-lhes os sorrisos, e o da preta foi ter com os sapatos. Papel de embrulho foi servido com caviar por um esturjão vestido de prisioneiro judeu, com os bigodes à Dali. Ouviam-se cânticos satânicos por coros celestiais. Havia auto-retratos em todo o lado. O cavalo comeu de uma vez uma cenoura de ouro que guardava à anos. O periquito largou o Grammy e começou a dançar. A raposa bebeu um nespresso. 


Entretanto, a preta subia, descalça, para um sótão escuro. Aí encontrou um homem cor-de-rosa.
Havia um gira-discos. Começou a tocar Bach. O sótão tinha uma janela apenas e o tecto estava repleto de frescos renascentistas. Ao canto estava um homem com um bloco de mármore. Era feio e estava curvado. Tentava entrar no bloco.
"Queres dançar?" - perguntou a preta ao homem cor-de-rosa.
"Sim."
Pelo tamanho das unhas dos pés, diria que a dança caminhava para o eterno.

Dançaram,                                                          e as paredes começaram a rachar.