domingo, 9 de setembro de 2012

domingo, 2 de setembro de 2012

"O Guilherme é um parte corações." 


Não, o Guilherme é um coração partido.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

#99

Um dia somos nós, no outro somos nós, outra vez. A simplicidade é decepcionante. E a vida é simples, por isso é decepcionante. E a vida é simples porque se fosse complicada ninguém vivia. As pessoas não gostam de coisas complicadas. Gostam de coisas desafiantes até certo ponto. Como o Campos diz num poema, não somos romancistas russos, e romantismo sim, mas com calma.

Bem. Eu estou a escrever porque devia estar a trabalhar. Tenho ali, na sala, um molho de papéis para ler e trabalhar (mais tarde saberão mais).

No filme "Cinema Paraíso" o Alfredo conta uma história muito interessante sobre um soldado e uma princesa.



Eu acho que cheguei à 99ª noite.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Santana

Santana  está sentado num caixão fechado, junto a uma lareira. Na rua as pessoas passam trajadas com trajes académicos. O interior da casa, Santana incluído, está a preto e branco, do lado de fora, pode-se ver por uma janela que está atrás de Santana, que se não fosse a outra, que o ilumina no lado direito da face, o deixava em contraluz, acontece um arco-íris. Com um canivete descasca uma banana da Madeira, e no chão caem lascas de amarelo esverdeado. Há um rádio ligado.

 


Há uns dias que ando a pensar. E penso muito numas coisas um bocado esquisitas. No sábado encontrei este canivete no armário. Pensei "quero fazer um barco, fazer um barco é que era giro". Por isso fui até à mercearia, e pedi cavacas de madeira, eles disseram-me que só tinham bananas da Madeira, por isso pedi um cacho daquilo. Enquanto as pesava, a menina que me atendia, com um decote chamativo, perguntou-me
o que ia fazer com elas. Olhei à volta e, como não vi ninguém, deduzi que falava das bananas. "São para comer? É que estão um pouco verdes ainda, convém deixar um tempo para amadurecer.". Perguntei-lhe se era verdade o que ela dizia, ela disse que sim. Perguntou-me se as queria apalpar, as bananas. Olhei para elas, e pensei por um bocado. "Não, sabe", disse eu, "gosto de ser surpreendido. Além disso, a coisa, enquanto tiver a casca não é de fiar. Nunca se sabe!". A rapariga, emitiu um som de riso contido. Não sei se sorriu porque não lhe consegui olhar para a cara. Não conseguia tirar os olhos das bamamas. (pausa) Bananas, digo. "E então, vai comê-las?". "Ah! Não, não, não, não... É para fazer um barco.". Ela disse que era uma boa ideia. Eu sorri e olhei para os meus pés, que estavam numa posição estranha. Aí, não me contive e desmanchei-me numa gargalhada que fez as mangas e os maracujás saltar das caixas onde estavam e começar a dançar salsa no chão.
(ri-se)
(pausa)
Quando cheguei a casa, hoje, pousei o saco de plástico transparente com as bananas lá dentro em cima da mesa da cozinha, uma mesa em forma de estrela de David porque assim tinha mais espaço para aproveitar no centro. Pequei no bloco de notas para fazer o plano do barco e, claro, escrever detalhadamente os passos do processo. Decidi que iria fazer uma canoa, de uma banana só, o que me causava um problema: o que fazer com o resto do cacho. Como sou meio desastrado percebi que seria bom ter umas bananas para treinar, antes de mexer na que me interessava. Não queria que a embarcação ficasse muito grande, não queria ir nela até à América. Mas quando pensei nisto, comecei a imaginar uma viagem numa canoa de banana da Madeira até à América. De repente comecei a ter uma dor aguda por cima dos olhos, e comecei a escrever. (ri-se) Na minha história, cujo personagem principal se chamava Cristóvão Barata, e era uma barata, o Cristóvão ia partir na canoa. Ia sozinho, por isso, ainda no lavatório cheio de água, despediu-se de todos os que tinham vindo para se despedir. "Adeus, meus amigos", dizia ele, "adeus, meus bichos!". E uma velha traça dos alimentos despedia-se dizendo "Adeus, meu animal! Adeus, minha barata tonta!". Todos os presentes, até o esfregão sorriam com ternura e sofrimento. (tempo) Todos diziam com as caras esperançosas e sonhadoras, mas com os espíritos desolados, que iam sentir muito, muito, muitíssimo a sua falta, que iam sentir muito a sua falta, que iam imaginar que ele estava sempre com eles, que ele estava aqui, e apontavam para o peito. (pausa longa) Depois pensei... Depois pensei que... Pensei que já não tenho ninguém. Olhei à minha volta, já estava aqui sentado... E a única coisa que vi foram as pessoas lá fora, todas coloridas naqueles trajes académicos de Coimbra. E eu não tinha ninguém. Dantes havia tanta gente a gostar de mim. Porque é que se foram embora. Porquê? (tempo) (a chorar) Olhei à volta e reparei que se tinham ido todos embora. E eu tinha saudades. Eu tenho saudades. (chora) Porque é que só agora é que tive saudades? (pausa longa) E as saudades foram tantas que se transformaram em tristeza, depois desespero, depois alegria, depois um desejo enorme de me matar com o canivete que encontrei no armário. De fazer um furo na mão, um buraco. Ver os dedos a perderem a cor, ver o mundo através da minha mão, da minha mão de artista. Tirei o canivete do bolso, ele é da cor do vinho tinto. Abri o canivete, olhei para a lâmina, que é muito grande. Naquele momento pensei que não seria boa ideia fazer a canoa com aquilo, a lâmina era grande demais. Examinei-a. Estava brilhante , espelhava na perfeição o mundo. Mostrava em alta definição  uma realidade invertida. Achei a coisa muito engraçada e quis ver como é o eu invertido. (sorri, com as lágrimas nos olhos) Olhei para mim. Olhei para os meus olhos durante muito tempo, não pareciam tristes. Os meus olhos estavam normais. Depois olhei para a minha cara e pensei "eu sou bonito". Afastei a lâmina e agora, para além de me ver a mim, via também o que estava atrás de mim, o que estava a fazer fundo. (olha para trás) Era fantástico. Havia frases escritas nas paredes com baton vermelho, versos. A minha casa é um poema. Havia quadros, desenhos, mundos imaginários tornados possíveis pela destreza de uma mão de artista. De repente não fazia sentido o buraco na mão, para ver o mundo. Eu podia criar o mundo. Eu podia criar pessoas, eu posso fazer pessoas com as minhas mãos. Posso fazê-las e dar-lhes vida. Não posso fazê-las respirar, ou dar-lhe um coração ou um cérebro, mas posso dar-lhes vida. Nome, idade, qual a sua origem, se são casados, o que comem quando vão a um café, como são quando estão bêbedos! (ri-se) E não precisava das pessoas de quem tinha saudades, fossem eles quem fossem, eu podia fazer os meus amigos, eu podia construí-los! Os meus amigos iam ser obras de arte. Como num dos quadros que lá estava, em que tudo era feito de copos de cristais, ou o outro em que as pessoas eram gomos de tangerinas, eu ia fazer os meus amigos com as bananas da Madeira! Saí de casa a correr, caí nas últimas três escadas e fiz um golpe na testa. (mostra o golpe na testa, levantando a franja) Este. Cheguei à mercearia e disse "Dê-me todas as bananas que tiver!". A rapariga sorriu e perguntou-me se ia reconstruir o Titanic. Não percebi o que ela queria dizer ao início, mas depois cheguei lá e ri-me. Olhei-lhe para a cara dela. (pausa) Olhei-lhe para os olhos. Eram muito claros, quase brancos. Ela era cega. (tempo) Por momentos pensei no que vêem os cegos. Será que não vêem nada? Eu acho que eles vêem o nada, precisamente. Enquanto pensava a rapariga perguntou qualquer coisa, como não a tinha ouvido perguntei o que era e ela repetiu o que tinha dito. Não a consegui ouvir outra vez. porque os lábios dela teimavam em mexer-se de uma maneira muito bonita, como se fossem duas bailarinas. Que lábios bonitos, meu Deus. Naquele momento eu queria agarrar nela pela cintura, levantá-la, com ela a ri-se, e raptá-la! Levá-la para o meu espaço preto e branco. Levá-la a conhecer o meu poema. Comecei a cantar, não sei porquê. Comecei a cantar uma música que inventava naquele momento. Uma música que não tinha nome, ainda. Era uma música, simplesmente. Não se explica, não conseguia baptizá-la porque não a estava a ver toda. (canta) A rapariga sorriu e disse que era muito bonito. Depois perguntou o que era e eu disse "És tu!". Ela começou a chorar. Esticou os braços e tocou-me na cara com os dedos e depois com as palmas das mãos. A tocar-me na cara deu a volta ao balcão e pôs-se em frente a mim e abraçou-me. Abraçou-me assim. (mostra) Eu sorri, perguntei pelas bananas, ela virou-se apalpou o balcão à procura da caixa grande onde as metera. Quando a encontrou, agarrou-a e parou por um bocadinho. Depois levantou a caixa, virou-se e deu-ma. Eu dei-lhe o dinheiro e despedi-me. Quando me vim embora, reparei que ela tinha ficado a olhar para mim, como se visse. Tinha ficado a olhar sem ver, como se estivesse a imaginar alguma coisa, como se estivesse a sonhar acordada. Ela estava a criar. Ela estava a criar um mundo hipotético. Ela era uma artista. Depois, quando se lembrou que não tinha escolhido ser artista, voltou ao mundo, e foi, apalpando o caminho, para trás do balcão. (pausa) (sorri) Eu vim para casa e comecei a trabalhar nos meus amigos. Tinha já duas figuras feitas, quando fui beber um copo de água. Enquanto bebia, o olhar fugiu-me pela janela. (pausa) (olha melhor) (começa a chorar) São eles... (pausa) São eles! E estão a viver, e a ser felizes. E estão juntos, no mesmo mundo. (pausa) Estão juntos... Mesmo mundo... (pausa) Olhei para eles durante um bom bocado. Eles estavam a andar em câmara lenta. Estavam muito diferentes, mas ao mesmo tempo iguais. Olhei para as figuras que tinha feito. Eram eles. Olhei lá para fora, eles tinham-se juntado e estavam em pose de fotografia de família. Olhavam para mim, e eu para eles. O olhar deles sim, tinha-se tornado triste quando olharam para mim. E eu pensei "quero ir ter com eles". Tentei abrir a janela, mas ela não se podia abrir. Saí pela porta, mas o mundo não era o mesmo. (pausa) Eu estava preso num mundo que eu próprio tinha criado. Eu fazia parte da minha criação. Tinha-me isolado dentro de mim, e esse era o meu mundo a preto e branco. A janela eram os meus olhos. A minha casa era eu mesmo. Os meus mundos eram o meu corpo. E eu queria sair daqui. Qual é o interesse de viver num mundo que eu criei? O que é que eu podia aprender com isso se, sendo eu o criador, sou detentor do conhecimento total? (começa a chorar) Eu queria sair. Gritei por eles, mas eles não me ouviam. Não tenho poder nenhum. Não tenho importância nenhuma! As pessoas só importam enquanto são vivas e eu estava morto. Quer dizer não estava morto, mas estava. Vocês são parte da minha criação. Eu estou a ver-vos, vocês vêem-me e aquilo que fazemos aqui é parte da minha criação. Eu sei que vocês vão ficar aí. Vão estar calados, não é? (pausa) Sim, eu estou a ver-vos, não me são indiferentes. Olha, ali está a rapariga da mercearia. (pausa) (tristemente e baixo, quase um suspiro chorado) Ai, Santana, Santana... (olha para o público) Devíamos fazer alguma coisa, todos em conjunto. Devíamos cantar. Cantam comigo? (canta uma música infantil que todos conheçam) Por favor, cantem comigo. Mostrem-me que existem! Salvem-me. Tirem-me daqui! (chora) Por favor... (canta mais alto).
(Enquanto canta, levanta-se com o canivete e a banana na mão. Deixa-o próximo do público. Vai às janelas, fecha as persianas. A lareira está acesa. Abre o caixão e, a cantar, deita-se lá dentro. Fecha o caixão e vai cantando progressivamente mais alto, cada vez mais alto até estar a gritar e mudar a melodia completamente. A certa altura começa só a gritar. E cala-se.)


(Silêncio muito longo)
(Pano)

Santos Pensamentos Populares

Ontem, quando passei pelo Chiado durante a madrugada, ouvi um rapaz agarrado à estátua do Pessoa (estátua que faço questão de cumprimentar, mesmo que apenas com o olhar, sempre que por ali passo) a dizer uma coisa muito interessante, apesar de ele não ter pensado da mesma maneira como eu entendi. Ele disse "Vou fazê-lo sorrir!". Achei a coisa muito interessante, por um lado pela impossibilidade de mudar a expressão de uma estátua, por outro, por nunca ter visto o Pessoa a sorrir para além de uma pequena contracção, mesmo ligeira, numa ou noutra fotografia. Há ainda outra coisa interessante, e que vai de encontro ao que quero falar aqui. O rapaz, devido eventualmente ao seu estado de embriaguez, acho importante que todos sorrissem, até o Pessoa. Queria que todos partilhassem da sua alegria. Escusado será dizer que o Pessoa manteve a compostura, e já está há mais tempo sóbrio do que esteve bêbedo em vida. É interessante esta necessidade de nos preocuparmos com os outros. É amor, isto, é amor de um género qualquer, mas é amor, isso é inegável. E o que é que o amor implica?
No outro dia estava a falar com uma pessoa sobre este tipo de coisas e disse-lhe que não era a fazer do compromisso, não me consigo comprometer, e entendo que isto choque, ainda que me maneira efémera e ligeira, as pessoas que me ouvem dizer, mas, neste momento, não me consigo comprometer. E comprometer é, também, assumir uma paixão, ou qualquer coisa que isso seja. Comprometer não é só estar ao lado de alguém é manter-se fiel, e ser fiel não é reservado a relações entre indivíduos, mas, numa vertente mais metafísica, às ideias que temos, àquilo que dizemos, por isso não gosto de gostar de ninguém, e quando gosto, venho para aqui escrever. É a minha maneira de me comprometer, mas aqui comprometo-me com o teclado e uns poucos olhos interessados, ou não, em letras e frases e pensamentos e amor e pensamentos sobre o amor. Por isso é que este espaço ainda existe.
Isto seria mais fácil, e interessante, se fosse um diálogo. Monólogos deste género não são aconselháveis. Por isso gostava de falar contigo que estás a ler este post. Vamos fazer um debate de ideias. Contigo mesmo, leitor. Sim?
Eu lanço o moto: Gosto muito mais de paixões platónicas que do amor em si!

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Um poema para ti, em jeito de carta de despedida que é um convite para jazz

É triste para mim estar apaixonado.
Ao contrário do que algumas pessoas possam pensar, eu não sou poeta. Não sei escrever poesia. Não sei viver poesia. Só a sei dizer, como toda a gente.
Merda.
Não tenho coragem. Sou um leão no passeio de tijolos de ouro.
Estou triste agora. Sinto-me frágil e inútil. Sinto falta de alguém, mas não tenho coragem de a chamar. Dou demasiada importância às pessoas. Aliás, dou demasiada importância a pessoas.
Num papelinho que encontrei na minha caixa de papelinhos, um pedaço de papel rasgado, pequeno, datado de há dois anos atrás, escrevi só uma frase: "Diz não ao amor!".
Sinto que devia andar com o papelinho sempre no bolso, ou na carteira, para me lembrar de dizer que não quero. Que não devia. E este não-querer não é voluntário. É imposto pela minha maneira de ser.
Tenho uma mania estúpida de me apaixonar por pessoas que são muito mais do que eu.

Gostava de escrever um bilhete, claro, como o Souto me disse para fazer, mas não tenho coragem.
Gostava de escrever um poema, mas não sei como o fazer.
Gostava de lhe dizer alguma coisa de muito agradável e bonita, mas não sei como o dizer.
Gostava de lhe dizer que ela é um poema, cheia de enormes universos, cheia de beleza e cheia de tudo.
Gostava de lhe ler um conto.
Gostava de lhe sussurrar um poema.
Gostava de lhe cantar uma canção.
Gostava de lhe dedicar um golo da selecção.
Gostava de lhe beijar a mão.
Gostava de lhe olhar nos olhos durante muito tempo.
Gostava de lhe pintar um quadro.
Gostava de lhe roubar um beijo.
Gostava de a levar ao um bailarico de verão.
Gostava de a convidar a dançar.
Gostava de lhe dizer que é muito bonita.
Gostava de inventar uma palavra nova para ti.


E gostava de concretizar o que disse,
gostava de concretizar o que disse,
gostava de concretizar o que disse.
Mas o que vou acabar por fazer é tentar esquecer o que gostava. Porque, no fundo, o que eu gosto mesmo é de não ter de me preocupar. É de estar confortável dentro do mau estar que é estar desconfortável.

E isto é o mais próximo de um poema que lhe vou dedicar, de um bilhete que lhe vou entregar ou de uma música que lhe vou cantar que consigo fazer. Enfim.
Não vos desejo isto. Não vos desejo que isto vos aconteça.
Não desejo nada neste momento. Neste momento em que, apesar de não estar a deprimir, estou muito triste e invejoso de todos os que não são como eu.

Vamos ouvir jazz, ?

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Uma sala escura. Um espelho. Uma caixa de cartão. Uma tela pintada. Um boneco de peluche.

Gaspar (Do interior da caixa) Sabes uma coisa? Não acredito em ti. (ri) O que te dá autorização para não acreditares em mim! Tempo. Mas não acredito em ti no sentido de não acreditar no que estás a dizer. Não acredito que estás aqui.

Pausa.

Estás aqui, não estás?

Pausa.


(Não se ouvindo nada.) Ah! Tempo. Sabes que é perigoso entrar em grutas que não conheces. No bosque há algumas, mas eu estive a sinalizá-las para não caíres lá como os outros.(Sai da caixa de cartão.) Ufa! Estou cheio de teias de aranha, acreditas? (ri às gargalhadas) Isto é giro. Pareço uma aranha. Hã? Ah, sim! Uma teia! Ou um móvel velho! Ou uma biblioteca!

Guilherme (Escondido atrás do espelho) Gaspar, estás a falar comigo?
Gaspar Não.
Guilherme Ah.

Pausa.

Sabes, não acredito em ti.
Gaspar Em mim?
Guilherme Hã?
Gaspar Não acreditas em mim?
Guilherme Em ti acredito.
Gaspar Ah! Estavas a falar com quem?
Guilherme Comigo.

(cont.)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Bicho




"Por favor, entre."
A voz era familiar, mas estava encapuçada, por isso seria muito difícil dar cara ao corpo peludo.
"Obrigado."
O lustre estava alto. Brilhante. Estava imenso calor lá dentro.
"Que bonita está!"
Tiraram-lhe o casaco. Era volumoso e castanho acinzentado. Feito de esponja.
"Esse vestido é lindíssimo, é de quem?"
Vinha de vestido vermelho. Os lábios estavam sobriamente pintados de vermelho, a pele excessivamente branca, os olhos vermelhos, como os dentes.
"Posso tirar uma fotografia?"
"Claro!"
"Permita-me só que acrescente um pormenor."
"Claro!"
Tira um lápis preto do bolso. Desenha-lhe um ponto um pouco acima do lábio, próximo do canto direito da boca. Rapidamente foge aos limites do ponto, e de ponto passa a linha, depois mancha, num instante estaria preta por completo.
"Óptimo!"
"Gosta?"
"Sim, sim. Fique só um instante quieta."
"Claro."
O macaco vestido de pinguim tirou os binóculos por um momento. Os seus olhos eram pequenos. Levou a máquina ao rosto. Desligaram a fonte de chocolate que estava no centro, e começou a tocar uma orquestra de violinos entre o macaco e a recém preta.
"Um momento..."
Toda a gente começou a dançar, e não demoraria muito até que os passos de dança provocassem a queda da parede lateral onde estavam desenhadas cenas de caça.
"Um..."
A fotografia começava a ser um sacrifício para todos. Uma avestruz acabara de ter um ataque cardíaco por falta de comida nas penas. O porco levantou-se com uma perna de presunto na mão e cumprimentou, acenando a cabeça, a vaca que pedia agora um hambúrguer vegetariano.
"Dois..."
Eles pararam de dançar, e a parede voltou a compor-se. O tecto ganhou uma racha entre os bicos, que quase se uniam, de um pato e um cisne. Uma especiaria começou a cantar e, de repente, todos queriam ser amigos dos amigos dela.
"Três!"
E com isto o macaco carrega no botão. Lançam-se confetis e tocam cornetas. A racha no tecto abre em buraco e uma máquina de lavar roupa cai de lá com a porta aberta. As luzes desligam-se e vê-se tudo à luz escura. A máquina, que era branca, caía azul e o sorriso na cara dos presentes era amarelo. Porco rompeu numa gargalhada que ganhou proporções astronómicas! Tanto que Andrómeda teve de vir pedir silêncio sob a ameaça de mostrar o buraco negro.
E a máquina. O movimento de queda da máquina era em câmara lenta, por isso os casais poderiam recomeçar a dançar pois ainda faltava muito para a máquina atingir o chão.
"Quer dançar?"
"Claro" - disse a preta - "Mas tenho de estar aqui antes da meia noite!"
A preta estava no local de embate. A máquina cairia sobre ela e não o poderia evitar, à meia noite tinha de ali estar.
Dançaram uma valsa, enquanto o canguru bebia café.
E a máquina descia.
O Coelho tomou o púlpito e começou a falar.
"Animais" - dizia ele - "Estamos neste jantar por um motivo."
Toda a gente congelou sob a luz negra. Da preta só se viam os dentes roxos e o vestido, da mesma cor, pois congelara de olhos fechados. Apenas Coelho estava iluminado por uma luz que entrava pelo buraco da máquina, que era a única coisa em movimento, lento.
"Por favor, paguem a felicidade antes que alguém se tenha de ir embora. Odeio ter de ser eu a dizer isto, mas a culpa é do Sapo, que entretanto já cá não está. Não foi convidado, a pedido da porta."
O movimento voltou à sala, mas apenas para um grupo de pessoas mais feias que saíam de buracos que faziam no soalho. Houve um que saiu da gaveta onde o suricata tinha os óculos.
Um por um, os sorrisos foram desaparecendo.
A sala estava agora repleta de pirilampos-olhos. Vista de cima parecia um bananal ao longe, para quem é míope.
Entretanto a meia noite chegara, e a preta teve de ir para debaixo da máquina. Olhou para cima e não chegava um palmo para que a máquina engolisse este belo, e único, espécime de ser humano. A porta da máquina estava aberta e voltada para a preta. Os relâmpagos acenderam-se como lâmpadas fluorescentes no céu.
A preta desapareceu. E com ela desaparecera toda uma espécie. Apenas os sapatos ficaram, e mesmo esses eram feios e cheiravam mal, por isso foram para o lixo.
Houve um momento de silêncio.

Os confetis saíam dos cantos da sala e uma corrente de felicidade unia os presentes. Coelho devolveu-lhes os sorrisos, e o da preta foi ter com os sapatos. Papel de embrulho foi servido com caviar por um esturjão vestido de prisioneiro judeu, com os bigodes à Dali. Ouviam-se cânticos satânicos por coros celestiais. Havia auto-retratos em todo o lado. O cavalo comeu de uma vez uma cenoura de ouro que guardava à anos. O periquito largou o Grammy e começou a dançar. A raposa bebeu um nespresso. 


Entretanto, a preta subia, descalça, para um sótão escuro. Aí encontrou um homem cor-de-rosa.
Havia um gira-discos. Começou a tocar Bach. O sótão tinha uma janela apenas e o tecto estava repleto de frescos renascentistas. Ao canto estava um homem com um bloco de mármore. Era feio e estava curvado. Tentava entrar no bloco.
"Queres dançar?" - perguntou a preta ao homem cor-de-rosa.
"Sim."
Pelo tamanho das unhas dos pés, diria que a dança caminhava para o eterno.

Dançaram,                                                          e as paredes começaram a rachar.