quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Bailarina


Firme.
Forte.
Feminina.

A pose da bailarina é religiosa. Não pode haver falhas.

Respira.

Isso...

Era uma sala pequena, com janelas grandes. As paredes eram brancas, excepto uma que estava forrada com espelhos. Era nessa parede que se encontrava a porta, também ela espelhada.
Ivona era russa. Tinha vindo para Nova Iorque à procura de um futuro, mas não encontrou mais que o presente. Ela dava aulas nessa pequena sala, a que chamava studiya. Tinha dez alunas.

Era Março. Ivona ia para o estúdio pelo mesmo caminho de sempre. Parou na loja de queques do costume, mesmo ao lado da entrada do zoológico de Nova Iorque, no Central Park. Ela adorava o Central Park. Depois com o queque cor-de-rosa numa mão e o galão da Starbucks na outra sentava-se cerca de vinte minutos a ler num relvado enorme, onde àquela hora num dia de semana, só se encontravam turistas. A cidade estava viva, apesar do dia cinzento. O que mais admirava em Nova Iorque era a cacofonia de sons, e a possibilidade que ela nos dá para escolhermos o que ouvir. Ouviam-se crianças a rir, crianças a chorar, discussões de casais, carros da polícia, dos bombeiros, ambulâncias, buzinas por causa do transito caótico, tudo. Tudo, até silêncio, que era a preferência de Ivona à hora em que se sentava a ler no relvado monumental do Central Park.
Eventualmente, o queque acaba, e o galão também. Ivona levanta-se e continua o caminho até chegar ao studiya. Ainda tinha tempo até a aluna da terça-feira de manhã chegar, por isso ia com calma. Quando caminhava, Ivona, que era magra, tinha cabelo escuro, liso, apanhado, andava com as mãos a balançar, e aproveitava para ir aquecendo as articulações e os músculos. Não se importava de aquecer no caminho, ninguém reparava. Essa é a magia que todas as grandes cidades, mesmo as mais pequenas entre elas, têm. Somos invisíveis. E é bom.
Mas a bailarina, que sonhava pertencer à Companhia Nacional de Ballet Russo, distraía-se com alguma facilidade. Via nas pessoas danças. Era como se cada um dançasse um género, inconscientemente. E criava coreografias, criava espectáculos baseados na gente que não é nada de Nova Iorque.
(Uma pessoa é menos importante em Nova Iorque, que numa aldeia do interior de Portugal) 
Poderiam pensar que sim, mas não. Essa abstracção da realidade, esse ver dança em todo o lado, não era positivo. E Ivona estava prestes a descobri-lo.

Firmeza.
Força.
Concentração.

As ambulâncias ouvem-se um pouco por toda a Nova Iorque. Tanto que as pessoas já nem se preocupavam quando ouviam uma passar. Não ouviam. Não ouvia. Não ou via. Ivona, não ouviu, nem viu, a ambulância aproximar-se. Estava demasiado entretida a ver as pessoas dançar.

Con-centra-ção.

A ambulância bateu de esquina em Ivona, fazendo-a levantar voo. Bateu-lhe um bocado abaixo da nádega esquerda, e a bailarina fez um último loop, desajeitado. Rodou sobre si mesma, caindo com a parte superior das costas e o pescoço no cimento do passeio Nova Iorquino. O cabelo apanhado, soltou-se. A elegância do andar perdeu-se. A "pérola", de Steinbeck voou da mala castanha de couro. Na cidade-oceano, ninguém deixou de fazer o que fazia. A cacofonia de sons continuou. O relvado manteve-se no Central Park.
As únicas pessoas naquela cidade que sentiram a falta da bailarina foram as alunas, e mesmo essas acabaram por esquecer. Naquela terça-feira, não foi a aluna que chegou atrasada, foi a professora que deixou de ir. O studiya ficara órfão.

São poucos os princípios que uma bailarina deve ter em conta:
Ser firme.
Ser forte.
Ser bela.
Ser inteligente.

Concentração e rigor.



Uma pessoa é mais importante numa aldeia do Centro de Portugal que no resto do Mundo.
Uma pessoa faz mais falta numa aldeia do Centro de Portugal que no resto do Mundo.


Perfeição.
Beleza.

Elegância.





P.S.: Faltarão algumas ideias
quanto à minha ideia do que
a bailarina ideal é,
mas fica uma última: deve ser 
perfeita.
Curiosidade: Steinbeck, morreu
em Nova Iorque.

4 comentários:

  1. gostei imenso! nao costumo seguir este blogg, nem sabia que existia, mas hoje chamou-me a atençao pelo simples facto de falar de bailarinas. eu faço ballet, e (sonhos ingenuos!) gostava muito de ser bailarina. pro ano vou-me candidatar à escola superior de dança em lisboa para realizar esse sonho, infelizmente nao tenho muita experiencia, por isso é pouco provavel que entre. de qualquer forma, queria viver da dança. infelizmente, apesar de "uma pessoa ser muito mais importante numa aldeia do centro de portugal" do que no resto do mundo, o nosso país nao oferece grandes oportunidades na área das artes. mas logo se ve o que o futuro nos reserva :) parabéns pelo post, nunca tinha visto o video, está fabuloso. adorei!

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  2. Obrigado Francisca!
    Fico feliz por teres gostado.

    Desconhecia as tuas ambições. E compreendo perfeitamente a tua preocupação, pois eu próprio quero seguir Teatro, e por isso para o ano vou-me candidatar à Escola Superior de Teatro e Cinema em Lisboa. Mas lá está, não sei se tenho qualidade para entrar. Já lá estive este ano, porque acompanhei uma amiga na segunda fase de selecção, e já percebi mais ou menos como é que aquilo funciona. Deu para perceber que é difícil entrar. (Por isso é que lhes chamamos sonhos.)
    No entanto, acho que devias seguir em frente com isso, e transformar o sonho num objectivo.
    O mais importante é teres força de vontade, empreendedorismo e iniciativa. Eu conheci um moço que foi para Londres estudar dança numa escola muito boa, e agora é professor de expressões numa escola em Vila Real.
    So, desejo-te a melhor sorte na concretização do teu "sonho".
    Há um verso de Ricardo Reis, que me fez apaixonar por Fernando Pessoa, teatro, e tudo, que diz "Pões quanto és no mínimo que fazes". :)

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  3. A frase do Pessoa está mal escrita, é Põe, não Pões. :)

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  4. Gostei muito! Pois, eu entrei em contacto com alguns alunos de lá, e tiveram-me a por a par das provas de entrada e do tipo de candidatos. Mas nunca sabemos realmente o que nos espera, nem se vão gostar de nós e do nosso trabalho.. De qq forma é um erro não tentarmos, pelo menos. Tenho sim força de vontade, e sei que tambem tens muita, vê-se pelos teus projectos. Também acho que isso é essencial, e gostarmos de facto do que fazemos. Obrigada, e muito boa sorte para ti tambem! Realmente estes sonhos são complicados, e pouca gente nos compreende. :p
    Esse verso tá brilhante mesmo, e é exactamente isso que temos que fazer e que temos que mostrar aos outros que nos entregamos totalmente ao que gostamos de fazer. obrigada mais uma vez :)

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