quinta-feira, 17 de junho de 2010

7º - Porque precisam...



Deitado na cama do Hospital, com o cabelo rapado, a barba feita. Os olhos cegos contemplavam as mais extraordinárias paisagens possíveis de imaginar. Estava voltado com a barriga para cima, os braços estavam estendidos na cama chegando perto da cintura, tinha os punhos cerrados, e a força que exercia numa tentativa de escapar à dor, fazia-lhe realçar os tendões e as veias. O momento estava para chegar àquele quarto do Hospital, e a família sabia-o, e ele também. O velho não estava calado, também não falava, emitia sons que demonstravam seu o sofrimento e desorientação. Não sabia onde estava, como estava, nem como seria daqui para a frente. Os familiares, três ou quatro que naquela segunda-feira não tinham ido trabalhar, tinham comportamentos distintos. O velho tinha uma filha, que estava ajoelhada ao lado da maca, agarrada ao punho fechado e magro do moribundo. Essa filha tinha dado dois netos ao pai. Os rapazes estavam visivelmente abalados, com os olhos molhados, apesar do mais novo se controlar melhor que o mais velho. O pai dos miúdos levou-os para fora do quarto. Levou os filhos, cada um de cada lado e, com as mãos nos ombros mais afastados de um e de outro, ficou, com eles, a contemplar o parque pela grande janela de vidros sujos, no fundo do corredor. Permaneceram calados. O pai franzia as sobrancelhas, assim como os filhos. O mais velho mexia os lábios, abrindo e fechando a boca, para não chorar. O mais novo limpava com a manga da camisola o nariz que estava a pingar. 
"Não deviam ter vindo..." - disse o pai com a voz grossa, que supostamente seria forte como ele, a tremer.
"Não, nós queríamos ver o avô."
"E dizer-lhe um último adeus."
"Sim, mas ele está muito mal... E a mãe também está muito triste."
"Podemos voltar?" - perguntava o mais velho, ignorando o pai.
"Espera."
"Só para dizer adeus, depois vamos embora."

Voltaram para dentro do quarto. A mãe dos rapazes continuava ajoelhada perante o pai, tinha fechado os olhos e estava a dizer alguma coisa. Possivelmente a rezar. O filho mais velho chegou-se perto da mãe, com cada vez mais dificuldade em conter as lágrimas, deu-lhe um abraço e um beijo, e virou-se para o avô. Meteu-lhe a mão na testa, e o velho sentiu a sua presença, e olhou para ele. O neto olhava agora nos olhos cegos, cobertos por uma película branca que os tornara mais claros, e começou a chorar. Queria dizer "Gosto muito de ti avô" mas as palavras não lhe saiam. Não conseguia dizer nada, fez-lhe uma festa na cabeça e levantou-se, contendo o grito que o choro e o desespero pediam.

"Já podemos ir." - Disse ao pai.


Os miúdos foram-se embora com o pai.

Ficavam agora sozinhos no quarto o pai e a filha. A filha, que já estava mais calma, lembrava-se agora de um momento que passara com o pai, quando a mãe saíra de casa, para sempre. Era uma lição, que o pai lhe dera e que ela sentia adequada neste momento, e começou a dizer.
"Sabes, pai. Viver é a coisa mais fácil de se fazer. Até os bichinhos mais pequenos, sem cérebro, o conseguem. Nós nascemos todos com um fim, os meios para lá chegar é que são infinitos, e variam de ser para ser. Não te preocupes se alguma coisa te corre mal. Cometemos erros, mas isso passa e é esquecido! O truque é fazeres alguma coisa no fim que faça esquecer todos os erros do passado. A questão é que nunca sabes quando é o fim. Por isso tens de ter o cuidado de remediar os erros o mais depressa possível. O difícil na vida, e tu já o percebeste, é saber viver. É como num jogo de inteligência." Fez uma pausa levantou-se e sentou-se na cama, ao lado do pai. "A maneira de olhar para a vida é sempre diferente. Imagina-a como uma garrafa de coca-cola. A garrafa está a meio: há pessoas que pensam "Bolas! Já vivi metade da vida... ", e outras que pensam "Boa! Ainda me falta metade!". As últimas são as felizes, são as que não têm medo de morrer. Não se arrependem do que fizeram em vida, porque o que fizeram estava bem, e sabem-no! São como tu."

E o pai fechou os olhos e esboçou um sorriso, como se tivesse ouvido o que a filha tinha dito e estivesse, também ele a rever aquele discurso que agora era a filha que lhe dizia, como se ele tivesse voltado a ser criança e ela fosse agora a sua mãe, teriam invertido os lugares. 
Na realidade o sorriso que ele esboçara era uma contracção. A tensão arterial aumentou drasticamente. Soaram os alarmes das máquinas que eram sons agudos e intensos e fizeram a filha tapar os ouvidos. Os enfermeiros entraram a correr pelo quarto, depois os médicos que entravam com as batas a voar como se fossem heróicas capas. Afastaram a filha, rodearam o pai e de repente os bips da máquina tornaram-se um bii interminável. A filha estava em choque. Levara as mãos, que tapavam a boca aberta, à cabeça. Os enfermeiros e os médicos que estavam em volta do seu pai começaram a trabalhar a uma velocidade superior. Nada. Um dos enfermeiros começou a dar pancadas fortes no peito do velho para o tentar reanimar. Os colegas seguraram-no. Baixaram a cabeça. Tinham desistido, e deixaram-no partir. Um dos médicos olhou para a filha do morto.

"Os meus pêsames, minha senhora."

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