sexta-feira, 8 de julho de 2011


Monólogo do autocarro

Isto passa-se numa espécie de hospital, num tempo incerto. O texto é dito com vários ritmos diferentes, e com muitas pausas e apartes. Baseado na obra "O Encarregado", de Harold Pinter. Escrito no início da viagem de autocarro que me trazia de Lisboa para Viseu, com paragem em Coimbra.

Miguel (visivelmente perturbado) Conheci um rapaz, uma vez, que era manco. Tinham-lhe feito uma operação mal acabada, e ele acabou por ficar assim. Diziam que ele não tinha remédio. Pois, ele não, mas a perna tinha, foi o que eu disse. A perna vai para o lixo, disse eu. E ouvi alguém chamar-me louco, ou doido, ou qualquer coisa parecida. Mas sabem que temos de ter ouvidos selectivos. Ele chamou-me doido, mas mal sabia que mais tarde se ia fazer isso. Porque se fez. Eles vieram buscá-lo numa maca, quer dizer, (pausa) ele já estava numa maca, e eles vieram buscá-la. Ou tiveram de o tirar? Pronto, eles vieram, assim brancos. Como a neve na torre da Serra da Estrela. Quer dizer, grande parte brancos, porque depois tinham outras cores, quer dizer, não é como se fossem bonecos de neve! E eles vieram, e apanharam-no a dormir. Eu sei, porque estava lá ao lado, na outra cama. Eles falavam baixinho, para não o acordar. Eu não achei bem, quer dizer, tirarem o homem dali sem o avisar. E gritei. Gritei assim, Ei! O que é que estão a fazer, hã?, e eles disseram-me para me calar, mas eu não me calei, e eles vinham para mim, e o homem não acordou, o que eu achei estranho, porque até veio uma enfermeira à porta, por isso o meu berro deve ter sido alto, quer dizer, eu sei que foi alto, porque tenho a noção das minhas capacidades. Mas eles vinham na minha direcção e eu ainda os tentei afastar com os braços, assim. E eles não pararam, agarraram-me dois ou três, e prenderam-me à cama, mas como eu não me calava eles deram-me uma injecção qualquer. Adormeci, e quando acordei já tinham deitado o homem na cama dele. Ele ainda estava a dormir, mas a mim pareceu-me mais moreno, se calhar porque não havia muita luz. Eu acho que ele era surfista. Mas eu levantei-me, quer dizer, para ver se ele estava bem, e cheguei-me perto dele, que estava coberto com uns lençóis brancos, como neve suja da estrada, e mandei a mão à ponta do lençol e… (pausa) E ele abriu os olhos, e gritou. Gritou muito, assim, AHH!! E eu assustei-me. E chegou uma enfermeira a correr pela porta a dentro, e eu olhei para ela, e ele perguntou o que é que eu estava a fazer, mas nem me deu tempo para responder, agarrou-me o braço, mas eu sou mais forte e consegui que ela não me tirasse do sítio, dei-lhe um empurrão, e ela foi a cair sem equilíbrio até à parede, bateu com a cabeça e desmaiou. E o homem continuava a gritar, e eu agarrei no lençol e baixei até aos pés… Quer dizer… Ao pé. (pausa) Tinham-lhe cortado a perna, assim, aqui nesta zona mesmo acima do joelho. Ou mesmo no joelho, não sei, nunca soube muito de anatomia, e agora nem me lembro muito bem, porque estava escuro e sujo. Mas o corte estava mal feito, o instrumento que usaram não estava bem afiado. E a perna estava meia desfeita na zona do corte. E ainda não tinha cicatrizado, porque a ligadura do homem estava ensopada em sangue. Eu sei porque também tinha passado sangue para o colchão. Mas não estive muito tempo a olhar para ele porque chegaram muitos homens com seringas e coisas, e batas e tudo, e levaram-me para um sítio qualquer, e deram-me qualquer coisa, ou fizeram, não me lembro bem. Sei que já não me lembrava muito bem das coisas, nem de mim, nem sabia onde estava quando acordei. Ainda nem sei onde estou, mas prenderam-me aqui. Depois ouvi uma conversa de uns tipos. (pausa) Bem, eu só espero que quando me cortarem a cabeça usem uma faca bem afiada.

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