quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Livre




"Morra o Dantas, morra! (pausa) Pim!"O público, um grupo de amigos, fica boquiaberto a olhá-lo. Estavam na sala sentados num sofá, José estava de pé, em frente a eles. Não eram muitos, quatro, para ser preciso.
E um deles avança.
"José, não achas que isso pode ser um bocado violento?"
"Violento? Ninguém é obrigado a ler isto. Eu escrevo o que me apetece! Além disso ele falou mal da nossa revista primeiro."
"Sim, claro... E o que pensas fazer com ele? Vais publicar?"
"É um panfleto, Fernando."
"Pois... Mas na minha opinião devias rever o texto!"
Outro, que estava sentado ao lado de Fernando.
"Sim, José, acho que o Fernando tem razão."
Outro ainda.
"Não tem nada. Ò Pessoa, o homem escreve o que lhe apetece!"
"Desculpa, mas eu também tenho direito a expressar a minha opinião." Respondeu Pessoa "Tu é que sabes o que fazer com isso, José! Mas não o vais relacionar com a Orpheu, pois não?"
"Não, não... É claro que as pessoas vão associar à revista, e que ela está na origem do texto..."
"Sim, mas eu não quero ter nada a ver com isso!"
"Ò Sá-Carneiro, mas qual é o problema? Tens medo do Dantas, é?" Ri.
"Vá, Eduardo, não é preciso exagerar!", advertiu Almada Negreiros.
"Só não quero que te aconteça nada..."
"Não te preocupes, Fernando."


A sala estava espessa de fumo. Eram poucos mas fumavam todos. Na sala estavam os principais colaboradores da Revista Orpheu. Tinham todos um objectivo em comum, mas opiniões diferentes. Almada Negreiros sentia que podia dizer o que quisesse, ninguém o tinha de ouvir, ninguém o tinha que julgar. Eduardo Viana concordava com Negreiros, apesar de ser mais discreto (em tudo), e tratava todos pelo último nome. Pessoa era revolucionário.... No pensamento, na vida real era muito tímido, educado (disciplinado pode ser a palavra mais certa) e por vezes podia parecer arrogante. Sá-carneiro era, basicamente, infeliz. Pouco falava, gostava mais de escrever as suas ideias que dizê-las em voz alta.
Quando os outros se foram embora, Almada Negreiros ficou sozinho em casa. A sala estava desarrumada, os cinzeiros cheios e o cheiro era quase insuportável, mas José não se preocupou em arrumar nada. Agarrou no seu "Manifesto Anti-Dantas" e sentou-se no chão da sala, sobre um tapete grande e avermelhado. Agarrou num lápis e desenhou o projecto do panfleto. No dia seguinte ia mandar copiar e então trataria da distribuição. Não seria difícil distribuir um panfleto tão polémico.
"Ainda hão-de falar muito em ti!" sussurrou, sorrindo, para o papel riscado a lápis e caneta, onde tinha escrito o manifesto.


Acordou com alguém a bater à porta. Tinha adormecido no chão da sala. Levantou-se e abriu a porta. Era a vizinha.
"Bom dia dona Amélia." A sua voz estava excessivamente grossa por ter acordado ainda agora.
"Bom dia Senhor José."
"Então, do que precisa?"
"Preciso que faça menos barulho à noite! Ontem era perto da meia-noite quando os seu amiguinhos saíram de sua casa, e fizeram, perdoe-me, mas fizeram muito barulho!"
A velhota, meia gorda irritava Almada Negreiros quando se referia aos seus colegas daquela maneira.
"Dona Amélia, não são amiguinhos, são grandes companheiros, e ilustres pessoas! E peço desculpa pelo ba..."
"Ah! Ilustres! São uma cambada de bêbedos, José! E fumam muito, isso só pode fazer mal! Cheira-se no prédio todo!"
Negreiros respira fundo.
"Sim, pois..." Esfrega os olhos " Mas se não se importa, eu tenho que fazer!"
"Muito bem, mas que não se volte a repetir!"

Almada fecha a porta, despedindo-se.
Abriu as janelas. Estava frio hoje. Debruçou-se sobre o parapeito da janela e olhou para baixo. Dava para um pátio sem interesse, mas Almada agarrou no bloco de folhas brancas e, com um lápis, começou a esboçar um desenho. Entretanto o sino da igreja, perto de sua casa, dá as horas. Eram onze. Tinha adormecido. Era tarde. Largou o bloco no chão, agarrou num casaco, penteou-se à pressa, pegou no manifesto e saiu de casa. Mal fecha a porta repara que se esqueceu de meter as chaves no bolso. Teria de pedir à chata da Amélia para lhe dar as suplentes que ela guarda. Mas, ignorando o facto de que estava preso fora de casa, avança, a correr, para a rua.
Teria de ir à tipografia que ficava na Rua Augusta. Não gostava de movimento, mas era o sítio onde lhe faziam o trabalho mais depressa e barato. Com sorte ainda encontrava Fernando Pessoa no Martinho d'Arcada.
No meio da multidão que andava na rua nessa altura, José destacava-se. Tinha o cabelo todo desalinhado, apesar de se ter penteado, e usava uma camisa com um padrão em losangos amarelos, as calças eram verde escuro.
Na tipografia disseram-lhe para passar lá por volta das quatro da tarde, o que era óptimo. Mas agora estava na hora do almoço, Pessoa estaria de certeza numa taberna ou num café algures por aqui. Experimentou o Martinho, mas Fernando não estava lá. Foi de porta em porta pelas tascas da zona, até se lembrar da Brasileira, no Chiado. Dirigiu-se para lá. Pessoa não estava na Brasileira. Na realidade estava em frente à estátua do "Chiado", completamente bêbedo, a discutir com o poeta que era conhecido pelo nome da zona onde morou grande parte da sua vida.

"Tu não és o Chiado! Tu és o António Ribeiro, malandro! O verdadeiro Chiado era muito mais útil que tu! Sabes quem foi? Sabes?" Cala-se, esperando uma resposta da estátua de bronze "Pois... Não sabes! Ele... Ele era o, o... O dono daqueles armazéns!" Aponta para os armazéns do chiadoSoluça "Tu achavas que tinhas piada, é o que é!"


Negreiros aproxima-se a passo acelerado de Pessoa.

"O que é que se passa?"
Pessoa está completamente alterado.
"José? Conheces o António?"
"Fernando, o que é que se passa?"
Pessoa começa a chorar.
"Matei-o!"
"Mataste-o? Quem?"
"O Mestre!"
"Mestre?"
"O Caeiro. Já não o vejo, acho que o matei!"
"Oh! Anda!" Agarra-o, despede-se da estátua levantando o chapéu "Já almoçaste?"
"Já..."
"O que é que comeste?"
"Comi? Eu não comi... Só bebi, José!"
José respira fundo. Nunca tinha visto o seu amigo assim.
"Aonde é que vamos?"
"Vamos para casa!"


Chegaram a casa de Fernando Pessoa. Não podiam ir para casa de Almada Negreiro, porque ele não tinha as chaves de casa, e não queria aturar a velhota. Quando bebia, Fernando ficava com sono. Por isso não demorou a adormecer. Almada aproveitou a sesta do amigo, escreveu-lhe um bilhete para o caso de acordarentretanto a dizer que tinha saído e levado as chaves de casa, ia almoçar.
O dia acabou por abrir, e a brisa já não estava tão fria. Almada esteve uma hora para almoçar e não saiu satisfeito. À saída do restaurante ainda encontrou um conhecido, e anunciou que havia novidades mais tarde.
Quando chegou a casa do Pessoa, o poeta ainda dormia, por isso recolheu o bilhete que tinha escrito e foi para a sala ler qualquer coisa. Eram duas e meia da tarde, ainda tinha tempo.
Havia umas cartas em cima de uma mesa alta no hall de entrada da casa. Estavam escritas em inglês, por isso pousou-as. Nunca gostou muito de línguas que não o português. Continuou, e foi para a sala. Pessoa tinha lá uns livros, pegou num e começou a lê-lo. Era sobre espiritismo. Pousou-o. Reparou que Pessoa tinha o cinzeiro cheio, pegou nele e lançou o lixo pela janela. Levantou-se e passeou pela sala. As paredes estavam um bocado vazias, talvez fizesse um quadro para oferecer ao Pessoa, uma pintura abstracta, ou até um retrato, mas nada vulgar. Tinha de pensar. Passou a mão pela máquina de escrever do amigo. Estava lá agarrada uma folha com um texto. Não era poesia. No topo dizia L. do D. Pensou que devia ser mais um heterónimo. Nunca tinha percebido essa história dos heterónimos. Pegou numa das folhas meias amareladasjunto máquina e tirou um lápis do bolso. Esboçou um possivel retrato de Fernando. Desenhou-o a caminhar, na rua. Não gostou do resultado final. Talvez o devesse sentar. No verso da folha desenhou Pessoa sentado, com uma caneta na mão. Em cima da mesa estava a Orpheu, e umas folhas. Não ficou convencido, mas guardou a folha, dobrada em quatro, no bolso. que estavam Nesse instante Pessoa entra pela sala a esfregar os olhos. 

"O... O que é que estás aqui a fazer?"
Estava com um hálito horrível. José ri-se.
"Olha, a salvar-te!
"Salvar-me?"
"Sim! É que o Chiado já estava a ficar aborrecido!"
"Como?"
"Nada... - Então, o que aconteceu ao Caeiro?"
"Não sei... Nunca mais o vi."
"Disseste que o mataste."
"Acho que sim."
"E estás bem?"
"Estou melhor que ele!"
Almada ri!
"Olha, esvaziei-te o cinzeiro, estava muito cheio."
"Onde é que deitaste as cinzas?"
"Pela janela."
"Ah! Não! Essa dá para a rua, José!"
"Epá, desculpa..."
"Não faz mal..." (silencio) "Ele estava muito cheio porque ontem ainda vim para cá com o Sá-Carneiro."
"Ai sim?"
"Sim.... Já imprimiste o manifesto?"
"Vou buscá-lo às quatro."
Pessoa faz uma careta.
"Tu é que sabes. O Mário esteve-me a dar uma novidade..."
"Então?"
Pessoa olha fixamente José.
"Ele vai para Paris."

(continua)

1 comentário:

  1. A continuação Guilherme? Isto está lindo... Adorei a forma como retrataste os escritores.

    Beijos Mariana

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