terça-feira, 19 de outubro de 2010

Leonardo

Quando somos crianças temos um  grupo, ao qual ensinamos coisas novas. Não sei se vos aconteceu, mas eu lembro-me de andar sempre com uma trupe atrás, e eu dizia-lhe coisas que tinha visto, coisas que me lembrava de fazer, e passávamos assim os tempos livres. Ora, na história mundial não faltam exemplos disso, especialmente na antiga Grécia.
Hoje escrevo, em particular, de um desses lideres de pequenos grupos (grupos que na linguagem corrente são de intelectuais). Um senhor chamado Leonardo.
A este ponto (se não leram o final, não se desgracem!) ainda não sabem se este Leonardo é real ou não.
Esse tal Leonardo nasceu numa terra pequena, com casas de pedra. Quando era pequeno, demonstrou ser muito inteligente e perspicaz. Esta segunda característica é, talvez, a mais importante: mais importante que um homem inteligente, é um homem perspicaz! 
E com o tempo se tornou homem. Um mestre dos sete ofícios. Fez de tudo, tudo. E por isso muitos eram os que o seguiam.
Mas havia um, Guilherme era o seu nome, e era o aprendiz de Leonardo.

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"Como?"
"Sim, bloqueios mentais."
"E o que é isso?"
"É perderes a capacidade de pensar!"
"Como é que isso é possível?"
"Então, é fácil de imaginares. Deixas de ser criativo."
"E quando é que isso acontece?"
Leonardo sorri.
"Quando estás apaixonado, Guilherme."
Guilherme baixa a cabeça. Caminhavam sobre um caminho de terra batida, e estavam rodeados por um descampado verde. Ao longe viam-se montanhas, e aqui e ali umas árvores.
"Pois..."
"Anima-te rapaz! Já pensaste no que seria se a criança decidisse não caminhar, porque sabe que um dia vai cair? Seria um caos! Ninguém levaria uma tarefa até ao fim, e éramos todos um simples grupo de mortais infelizes. Sim, porque é a ideia da morte, que nos tira a vontade de viver."
"Não percebo..."
"Guilherme, não podes desistir se não tentares. Percebes?"
"Sim, mas como é que isso se aplica a isto?"
"Isto o quê?"
"Eh... Esqueça, não devemos estar a falar da mesma coisa."
"Estamos sim, disso tenho a certeza!"
"Não sei..."
Leonardo pára, com esta observação de Guilherme. Tinham chegado ao pé de uma árvore que oferecia uma sombra não total.
"Guilherme"
O discípulo olhou.
"Senta-te."
Obedeceu. Obedeceu e ficou a olhar o seu mestre, professor da Vida, que levantado em frente dele lhe falava.
"Temos todos um objectivo na Vida. Uns querem perceber para que serve, outros querem simplesmente vivê-la sem pensar no que estão aqui a fazer. Mas durante este percurso, que é desde o ventre à cova, passamos por vários caminhos, Guilherme, caminhos que podem ser de terra batida, como este que percorríamos agora ou podem ser de pedra calcetada, como aquele que temos na nossa aldeia. Pensa neles como .estradas largas onde circulamos, mas não sós. Estás a perceber?"
"Sim."
"Boa! Agora vamos acrescentar duas muralhas, uma de cada lado da estrada. O único caminho que tens é esse onde estás."
"Estou a ver..."
"Óptimo! Agora... E aqui é que está o cerne da questão. Agora, imagina que te aparece uma linha de fogo, de uma margem à outra, não muito larga à tua frente, tu páras?"
"Paro... Uma linha de fogo, por mais fina que seja é um perigo!"
"Não! Guilherme, esse vai ser o mais pequeno grande obstáculo com que te vais deparar. Tens de o tentar ultrapassar, não sei, tentas saltar por cima, apagar o fogo. Mas acredita, mal superes este, serás capaz de o superar outra vez, este ou outros."
"Pois, não tinha pensado nisso.."
"E depois de o superares, imagina que te aparece um cão raivoso. O que fazes?"
"Corro!"
"Corres?"
"Sim."
"Mas assim ele segue-te, e como é mais rápido, apanha-te! Podes fugir, numa primeira fase, mas depois, tens de o matar, se não quiseres que ele te mate a ti."
"Ah..."
"E mesmo assim, se fugires, esse foi um obstáculo que te seguiu durante algum tempo e te fez perder algumas coisas. Correste no caminho, e por isso não desfrutaste dele. Mas depois de o matares, serás imune a esse tipo de problemas."
"Sim..."
"E então, o que se passa?"
Leonardo senta-se junto de Guilherme.
"Eu amo uma mulher."
"Isso é normal!", ri, "E ela não te ama, não é?"
"Não sei."
"Então? Ela sabe que a amas?"
"Não sei. Eu acho que sim, e que ela me ama também..."
"Mas disseste que não sabias..."
"Leonardo, eu não sei o que saber."
"Achar. Não sei o que achar."
"Sim."
Leonardo respira fundo.
" Então não lhe disseste que a amavas..."
"Não"
"E como achas que ela pode desconfiar?"
"Já posso ter dado a entender... O Leonardo sabe, com atitudes e comentários..."
"Mas costumam falar?"
"Não directamente, mais ou menos..."
"Olha, Guilherme, estás numa situação muito estúpida!"
"Desculpe?"
"Olha, tens de ver duas coisas. Primeiro tens de ver se ela merece o teu amor, depois, se ela o merecer, tens de a convencer a amar-te a ti, se é que isso já não acontece..."
"Ah.."
"Sabes, o amora não é inato. Uma pessoa não nasce a amar outra. Apaixona-se."
"Mas isto não me afecta o pensar?"
"A criatividade?"
"Sim, como dizia há pouco..."
"A situação em que estás, sim, deixa-te atrofiado!", ri mais uma vez.
Faz-se silêncio.
"E se ela diz que não?"
"Que não o quê?"
"Que não me ama."
"Mas foi isso que eu te disse, tens de a convencer!"
"Mas e se ela diz que não está disposta a amar-me?"
"Não merece o teu amor." (pausa) "E então, vais falar-lhe?"
"Eu não a conheço."
Leonardo riu.
"Nem nunca a vais conhecer..."

Nesse dia, depois de falarem, Leonardo foi para casa. Guilherme acompanhou-o. Na altura vivia em França, no solar Clos Lucé. Era Maio. Depois do jantar, Leonardo deitou-se na cama. Morreu durante a noite. Ficou recordado como o filho da sua terra, Anchiano, em Vinci, Itália. Morreu mas foi sempre recordado como Leonardo de(da) Vinci.


Razão porque escolhi a música: Gostei bastante, primeiro, da sonoridade, e depois porque a letra se encaixa no texto, falando de desencontros. Mais nada! :)

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