sexta-feira, 13 de abril de 2012

Bicho




"Por favor, entre."
A voz era familiar, mas estava encapuçada, por isso seria muito difícil dar cara ao corpo peludo.
"Obrigado."
O lustre estava alto. Brilhante. Estava imenso calor lá dentro.
"Que bonita está!"
Tiraram-lhe o casaco. Era volumoso e castanho acinzentado. Feito de esponja.
"Esse vestido é lindíssimo, é de quem?"
Vinha de vestido vermelho. Os lábios estavam sobriamente pintados de vermelho, a pele excessivamente branca, os olhos vermelhos, como os dentes.
"Posso tirar uma fotografia?"
"Claro!"
"Permita-me só que acrescente um pormenor."
"Claro!"
Tira um lápis preto do bolso. Desenha-lhe um ponto um pouco acima do lábio, próximo do canto direito da boca. Rapidamente foge aos limites do ponto, e de ponto passa a linha, depois mancha, num instante estaria preta por completo.
"Óptimo!"
"Gosta?"
"Sim, sim. Fique só um instante quieta."
"Claro."
O macaco vestido de pinguim tirou os binóculos por um momento. Os seus olhos eram pequenos. Levou a máquina ao rosto. Desligaram a fonte de chocolate que estava no centro, e começou a tocar uma orquestra de violinos entre o macaco e a recém preta.
"Um momento..."
Toda a gente começou a dançar, e não demoraria muito até que os passos de dança provocassem a queda da parede lateral onde estavam desenhadas cenas de caça.
"Um..."
A fotografia começava a ser um sacrifício para todos. Uma avestruz acabara de ter um ataque cardíaco por falta de comida nas penas. O porco levantou-se com uma perna de presunto na mão e cumprimentou, acenando a cabeça, a vaca que pedia agora um hambúrguer vegetariano.
"Dois..."
Eles pararam de dançar, e a parede voltou a compor-se. O tecto ganhou uma racha entre os bicos, que quase se uniam, de um pato e um cisne. Uma especiaria começou a cantar e, de repente, todos queriam ser amigos dos amigos dela.
"Três!"
E com isto o macaco carrega no botão. Lançam-se confetis e tocam cornetas. A racha no tecto abre em buraco e uma máquina de lavar roupa cai de lá com a porta aberta. As luzes desligam-se e vê-se tudo à luz escura. A máquina, que era branca, caía azul e o sorriso na cara dos presentes era amarelo. Porco rompeu numa gargalhada que ganhou proporções astronómicas! Tanto que Andrómeda teve de vir pedir silêncio sob a ameaça de mostrar o buraco negro.
E a máquina. O movimento de queda da máquina era em câmara lenta, por isso os casais poderiam recomeçar a dançar pois ainda faltava muito para a máquina atingir o chão.
"Quer dançar?"
"Claro" - disse a preta - "Mas tenho de estar aqui antes da meia noite!"
A preta estava no local de embate. A máquina cairia sobre ela e não o poderia evitar, à meia noite tinha de ali estar.
Dançaram uma valsa, enquanto o canguru bebia café.
E a máquina descia.
O Coelho tomou o púlpito e começou a falar.
"Animais" - dizia ele - "Estamos neste jantar por um motivo."
Toda a gente congelou sob a luz negra. Da preta só se viam os dentes roxos e o vestido, da mesma cor, pois congelara de olhos fechados. Apenas Coelho estava iluminado por uma luz que entrava pelo buraco da máquina, que era a única coisa em movimento, lento.
"Por favor, paguem a felicidade antes que alguém se tenha de ir embora. Odeio ter de ser eu a dizer isto, mas a culpa é do Sapo, que entretanto já cá não está. Não foi convidado, a pedido da porta."
O movimento voltou à sala, mas apenas para um grupo de pessoas mais feias que saíam de buracos que faziam no soalho. Houve um que saiu da gaveta onde o suricata tinha os óculos.
Um por um, os sorrisos foram desaparecendo.
A sala estava agora repleta de pirilampos-olhos. Vista de cima parecia um bananal ao longe, para quem é míope.
Entretanto a meia noite chegara, e a preta teve de ir para debaixo da máquina. Olhou para cima e não chegava um palmo para que a máquina engolisse este belo, e único, espécime de ser humano. A porta da máquina estava aberta e voltada para a preta. Os relâmpagos acenderam-se como lâmpadas fluorescentes no céu.
A preta desapareceu. E com ela desaparecera toda uma espécie. Apenas os sapatos ficaram, e mesmo esses eram feios e cheiravam mal, por isso foram para o lixo.
Houve um momento de silêncio.

Os confetis saíam dos cantos da sala e uma corrente de felicidade unia os presentes. Coelho devolveu-lhes os sorrisos, e o da preta foi ter com os sapatos. Papel de embrulho foi servido com caviar por um esturjão vestido de prisioneiro judeu, com os bigodes à Dali. Ouviam-se cânticos satânicos por coros celestiais. Havia auto-retratos em todo o lado. O cavalo comeu de uma vez uma cenoura de ouro que guardava à anos. O periquito largou o Grammy e começou a dançar. A raposa bebeu um nespresso. 


Entretanto, a preta subia, descalça, para um sótão escuro. Aí encontrou um homem cor-de-rosa.
Havia um gira-discos. Começou a tocar Bach. O sótão tinha uma janela apenas e o tecto estava repleto de frescos renascentistas. Ao canto estava um homem com um bloco de mármore. Era feio e estava curvado. Tentava entrar no bloco.
"Queres dançar?" - perguntou a preta ao homem cor-de-rosa.
"Sim."
Pelo tamanho das unhas dos pés, diria que a dança caminhava para o eterno.

Dançaram,                                                          e as paredes começaram a rachar.






1 comentário:

  1. Caramba, o quão longe voa a tua imaginação? Fantástico, achei.

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