quarta-feira, 13 de junho de 2012

Santana

Santana  está sentado num caixão fechado, junto a uma lareira. Na rua as pessoas passam trajadas com trajes académicos. O interior da casa, Santana incluído, está a preto e branco, do lado de fora, pode-se ver por uma janela que está atrás de Santana, que se não fosse a outra, que o ilumina no lado direito da face, o deixava em contraluz, acontece um arco-íris. Com um canivete descasca uma banana da Madeira, e no chão caem lascas de amarelo esverdeado. Há um rádio ligado.

 


Há uns dias que ando a pensar. E penso muito numas coisas um bocado esquisitas. No sábado encontrei este canivete no armário. Pensei "quero fazer um barco, fazer um barco é que era giro". Por isso fui até à mercearia, e pedi cavacas de madeira, eles disseram-me que só tinham bananas da Madeira, por isso pedi um cacho daquilo. Enquanto as pesava, a menina que me atendia, com um decote chamativo, perguntou-me
o que ia fazer com elas. Olhei à volta e, como não vi ninguém, deduzi que falava das bananas. "São para comer? É que estão um pouco verdes ainda, convém deixar um tempo para amadurecer.". Perguntei-lhe se era verdade o que ela dizia, ela disse que sim. Perguntou-me se as queria apalpar, as bananas. Olhei para elas, e pensei por um bocado. "Não, sabe", disse eu, "gosto de ser surpreendido. Além disso, a coisa, enquanto tiver a casca não é de fiar. Nunca se sabe!". A rapariga, emitiu um som de riso contido. Não sei se sorriu porque não lhe consegui olhar para a cara. Não conseguia tirar os olhos das bamamas. (pausa) Bananas, digo. "E então, vai comê-las?". "Ah! Não, não, não, não... É para fazer um barco.". Ela disse que era uma boa ideia. Eu sorri e olhei para os meus pés, que estavam numa posição estranha. Aí, não me contive e desmanchei-me numa gargalhada que fez as mangas e os maracujás saltar das caixas onde estavam e começar a dançar salsa no chão.
(ri-se)
(pausa)
Quando cheguei a casa, hoje, pousei o saco de plástico transparente com as bananas lá dentro em cima da mesa da cozinha, uma mesa em forma de estrela de David porque assim tinha mais espaço para aproveitar no centro. Pequei no bloco de notas para fazer o plano do barco e, claro, escrever detalhadamente os passos do processo. Decidi que iria fazer uma canoa, de uma banana só, o que me causava um problema: o que fazer com o resto do cacho. Como sou meio desastrado percebi que seria bom ter umas bananas para treinar, antes de mexer na que me interessava. Não queria que a embarcação ficasse muito grande, não queria ir nela até à América. Mas quando pensei nisto, comecei a imaginar uma viagem numa canoa de banana da Madeira até à América. De repente comecei a ter uma dor aguda por cima dos olhos, e comecei a escrever. (ri-se) Na minha história, cujo personagem principal se chamava Cristóvão Barata, e era uma barata, o Cristóvão ia partir na canoa. Ia sozinho, por isso, ainda no lavatório cheio de água, despediu-se de todos os que tinham vindo para se despedir. "Adeus, meus amigos", dizia ele, "adeus, meus bichos!". E uma velha traça dos alimentos despedia-se dizendo "Adeus, meu animal! Adeus, minha barata tonta!". Todos os presentes, até o esfregão sorriam com ternura e sofrimento. (tempo) Todos diziam com as caras esperançosas e sonhadoras, mas com os espíritos desolados, que iam sentir muito, muito, muitíssimo a sua falta, que iam sentir muito a sua falta, que iam imaginar que ele estava sempre com eles, que ele estava aqui, e apontavam para o peito. (pausa longa) Depois pensei... Depois pensei que... Pensei que já não tenho ninguém. Olhei à minha volta, já estava aqui sentado... E a única coisa que vi foram as pessoas lá fora, todas coloridas naqueles trajes académicos de Coimbra. E eu não tinha ninguém. Dantes havia tanta gente a gostar de mim. Porque é que se foram embora. Porquê? (tempo) (a chorar) Olhei à volta e reparei que se tinham ido todos embora. E eu tinha saudades. Eu tenho saudades. (chora) Porque é que só agora é que tive saudades? (pausa longa) E as saudades foram tantas que se transformaram em tristeza, depois desespero, depois alegria, depois um desejo enorme de me matar com o canivete que encontrei no armário. De fazer um furo na mão, um buraco. Ver os dedos a perderem a cor, ver o mundo através da minha mão, da minha mão de artista. Tirei o canivete do bolso, ele é da cor do vinho tinto. Abri o canivete, olhei para a lâmina, que é muito grande. Naquele momento pensei que não seria boa ideia fazer a canoa com aquilo, a lâmina era grande demais. Examinei-a. Estava brilhante , espelhava na perfeição o mundo. Mostrava em alta definição  uma realidade invertida. Achei a coisa muito engraçada e quis ver como é o eu invertido. (sorri, com as lágrimas nos olhos) Olhei para mim. Olhei para os meus olhos durante muito tempo, não pareciam tristes. Os meus olhos estavam normais. Depois olhei para a minha cara e pensei "eu sou bonito". Afastei a lâmina e agora, para além de me ver a mim, via também o que estava atrás de mim, o que estava a fazer fundo. (olha para trás) Era fantástico. Havia frases escritas nas paredes com baton vermelho, versos. A minha casa é um poema. Havia quadros, desenhos, mundos imaginários tornados possíveis pela destreza de uma mão de artista. De repente não fazia sentido o buraco na mão, para ver o mundo. Eu podia criar o mundo. Eu podia criar pessoas, eu posso fazer pessoas com as minhas mãos. Posso fazê-las e dar-lhes vida. Não posso fazê-las respirar, ou dar-lhe um coração ou um cérebro, mas posso dar-lhes vida. Nome, idade, qual a sua origem, se são casados, o que comem quando vão a um café, como são quando estão bêbedos! (ri-se) E não precisava das pessoas de quem tinha saudades, fossem eles quem fossem, eu podia fazer os meus amigos, eu podia construí-los! Os meus amigos iam ser obras de arte. Como num dos quadros que lá estava, em que tudo era feito de copos de cristais, ou o outro em que as pessoas eram gomos de tangerinas, eu ia fazer os meus amigos com as bananas da Madeira! Saí de casa a correr, caí nas últimas três escadas e fiz um golpe na testa. (mostra o golpe na testa, levantando a franja) Este. Cheguei à mercearia e disse "Dê-me todas as bananas que tiver!". A rapariga sorriu e perguntou-me se ia reconstruir o Titanic. Não percebi o que ela queria dizer ao início, mas depois cheguei lá e ri-me. Olhei-lhe para a cara dela. (pausa) Olhei-lhe para os olhos. Eram muito claros, quase brancos. Ela era cega. (tempo) Por momentos pensei no que vêem os cegos. Será que não vêem nada? Eu acho que eles vêem o nada, precisamente. Enquanto pensava a rapariga perguntou qualquer coisa, como não a tinha ouvido perguntei o que era e ela repetiu o que tinha dito. Não a consegui ouvir outra vez. porque os lábios dela teimavam em mexer-se de uma maneira muito bonita, como se fossem duas bailarinas. Que lábios bonitos, meu Deus. Naquele momento eu queria agarrar nela pela cintura, levantá-la, com ela a ri-se, e raptá-la! Levá-la para o meu espaço preto e branco. Levá-la a conhecer o meu poema. Comecei a cantar, não sei porquê. Comecei a cantar uma música que inventava naquele momento. Uma música que não tinha nome, ainda. Era uma música, simplesmente. Não se explica, não conseguia baptizá-la porque não a estava a ver toda. (canta) A rapariga sorriu e disse que era muito bonito. Depois perguntou o que era e eu disse "És tu!". Ela começou a chorar. Esticou os braços e tocou-me na cara com os dedos e depois com as palmas das mãos. A tocar-me na cara deu a volta ao balcão e pôs-se em frente a mim e abraçou-me. Abraçou-me assim. (mostra) Eu sorri, perguntei pelas bananas, ela virou-se apalpou o balcão à procura da caixa grande onde as metera. Quando a encontrou, agarrou-a e parou por um bocadinho. Depois levantou a caixa, virou-se e deu-ma. Eu dei-lhe o dinheiro e despedi-me. Quando me vim embora, reparei que ela tinha ficado a olhar para mim, como se visse. Tinha ficado a olhar sem ver, como se estivesse a imaginar alguma coisa, como se estivesse a sonhar acordada. Ela estava a criar. Ela estava a criar um mundo hipotético. Ela era uma artista. Depois, quando se lembrou que não tinha escolhido ser artista, voltou ao mundo, e foi, apalpando o caminho, para trás do balcão. (pausa) (sorri) Eu vim para casa e comecei a trabalhar nos meus amigos. Tinha já duas figuras feitas, quando fui beber um copo de água. Enquanto bebia, o olhar fugiu-me pela janela. (pausa) (olha melhor) (começa a chorar) São eles... (pausa) São eles! E estão a viver, e a ser felizes. E estão juntos, no mesmo mundo. (pausa) Estão juntos... Mesmo mundo... (pausa) Olhei para eles durante um bom bocado. Eles estavam a andar em câmara lenta. Estavam muito diferentes, mas ao mesmo tempo iguais. Olhei para as figuras que tinha feito. Eram eles. Olhei lá para fora, eles tinham-se juntado e estavam em pose de fotografia de família. Olhavam para mim, e eu para eles. O olhar deles sim, tinha-se tornado triste quando olharam para mim. E eu pensei "quero ir ter com eles". Tentei abrir a janela, mas ela não se podia abrir. Saí pela porta, mas o mundo não era o mesmo. (pausa) Eu estava preso num mundo que eu próprio tinha criado. Eu fazia parte da minha criação. Tinha-me isolado dentro de mim, e esse era o meu mundo a preto e branco. A janela eram os meus olhos. A minha casa era eu mesmo. Os meus mundos eram o meu corpo. E eu queria sair daqui. Qual é o interesse de viver num mundo que eu criei? O que é que eu podia aprender com isso se, sendo eu o criador, sou detentor do conhecimento total? (começa a chorar) Eu queria sair. Gritei por eles, mas eles não me ouviam. Não tenho poder nenhum. Não tenho importância nenhuma! As pessoas só importam enquanto são vivas e eu estava morto. Quer dizer não estava morto, mas estava. Vocês são parte da minha criação. Eu estou a ver-vos, vocês vêem-me e aquilo que fazemos aqui é parte da minha criação. Eu sei que vocês vão ficar aí. Vão estar calados, não é? (pausa) Sim, eu estou a ver-vos, não me são indiferentes. Olha, ali está a rapariga da mercearia. (pausa) (tristemente e baixo, quase um suspiro chorado) Ai, Santana, Santana... (olha para o público) Devíamos fazer alguma coisa, todos em conjunto. Devíamos cantar. Cantam comigo? (canta uma música infantil que todos conheçam) Por favor, cantem comigo. Mostrem-me que existem! Salvem-me. Tirem-me daqui! (chora) Por favor... (canta mais alto).
(Enquanto canta, levanta-se com o canivete e a banana na mão. Deixa-o próximo do público. Vai às janelas, fecha as persianas. A lareira está acesa. Abre o caixão e, a cantar, deita-se lá dentro. Fecha o caixão e vai cantando progressivamente mais alto, cada vez mais alto até estar a gritar e mudar a melodia completamente. A certa altura começa só a gritar. E cala-se.)


(Silêncio muito longo)
(Pano)

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